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terça-feira, 12 de agosto de 2014

Tarde (conto de Lohan Lage Pignone*)

(*postando a pedido do autor, que está com problemas no computador) 

Antes de sair, conferiu o gás da cozinha. As janelas. A franja no espelho. Lavou as mãos demoradamente. A toalha estava na corda. Abriu a porta. Olhou para trás, uma última vez. Estava esquecendo alguma coisa: mantra diário. Apalpa os bolsos da calça. Afrouxa o nó da gravata. Segura firme a alça da maleta. Sofre um repentino ataque de tosse. Sai. Tranca a porta, retomando o fôlego. Com os olhos lacrimejantes, sorri um bom dia nervoso para o vizinho na porta do elevador. No elevador, “tá quente hoje”. Acena para o porteiro que estava distraído com a calça de ginástica da vizinha que cruzava o saguão. Táxi, táxi. Toca pra Rio Branco. Toca James Taylor na rádio. Recordou-se do Rock in Rio de 86. Ela estava lá. Mas não se conheceram. “Essas obras não acabam nunca...”, o taxista interrompe. Desceu na Cinelândia. Consultou o relógio de pulso. Presente de bodas de prata. Foi há dois meses. Um menino suspeito está de butuca. Um preto na Rio Branco. Apertou o passo. Não quis olhar para trás, mas pressentia a perseguição. Sinal fechado. Multidão na faixa de pedestres. Encontrão com um homem. A maleta se espatifa. Papéis em revoada. Divórcios, heranças, abusos da telefonia, assédio moral. Os casos pisoteados, indo de encontro aos transeuntes, os que transam. Como na vida. Casos e mais casos se apresentam, e não há como fugir deles. Chame seu advogado. Agora ele está sentado na beira da calçada, com as mãos afundadas no abismo do olhar. O menino preto ajuda a recolher a papelada. “Segura aí, dotor”. Pagou um pão com manteiga pra ele. Tomou um café expresso. Secou o suor com um lenço de papel. Ela sempre punha lenços de papel em sua maleta. Tudo começou com uma cantada no guardanapo. Idos de 89. Maracanã. O Botafogo foi campeão após 21 anos sem título. Ela estava lá. Mas não se conheceram. Ligou a TV do escritório. “O Botafogo pode ir à falência”, anuncia o comentarista esportivo de São Paulo. Tudo está falindo. O dia que mal começou, o casamento que começou mal. Zapeia os canais. Larga o controle sobre a mesa. Confere a fechadura. Arranca um embrulho do bolso. Afasta as coisas da mesa. Descarrega uma carreira. Inala agressivamente. Larga o controle sobre a mesa. O corpo estremece, relaxa no encosto da cadeira. A cabeça pende para trás, o nariz fungando. O telefone toca. Tira do gancho. Liga a cafeteira. Café requentado de algum dia desses. Está inquieto. O coração quase à boca. Foi assim naquele barzinho, depois do jogo. Ela vestia a camisa do Vasco. Não importava. Pediu uma caneta ao garçom. Passou a cantada. Ela riu com as amigas. Tentava apaziguar seu músculo disparado com algumas doses de uísque. Tomou coragem. A campainha toca. Arruma aqui e ali. Assoa o nariz. Sangra. Lenço de papel. Campainha. “Calma, merda!”. Era ela. A loira do escritório vizinho. Contadora. “Tava contando os minutos pra te ver”, ela diz, sedutora. Porta trancada. Trepada sobre os processos à mesa. Largam o controle sobre a mesa. O café fervilhando na cafeteira. Abotoou a blusa social branca, ajeitou o cabelo, retocou o batom vermelho. “Odeio essa aliança”, dispara, apertando os lábios. Ele correu de cueca para desligar a cafeteira. “Até amanhã”. A lua de mel foi fria. Ela não estava lá. Brigaram. Não deveriam ter seguido adiante. Tudo foi longe demais. Confere os e-mails. Limpa a caixa de spam. Apanha um cigarro na gaveta. Fuma enquanto analisa um divórcio litigioso. Chora por longos minutos. O celular vibra sem parar. Número desconhecido. Homem desconhecido de si próprio. Abandona o escritório, não sem antes limpar o cinzeiro, conferir as tomadas, as persianas. Perambulou pela Cinelândia com a maleta na mão. Sentou à escadaria da Biblioteca Nacional. Arregaçou as mangas, o calor castigava seus neurônios. Roeu as unhas. Já não tinha mais unhas para consumir naquela noite chuvosa de junho. A espera oficial pelo título da paternidade. Andava de um lado pro outro, o barulho atordoante da sola do sapato naquele corredor hospitalar encerado. Teria que se entulhar de casos, quiçá fazer até uns extras. Filho é trabalho. E sonho. “Sinto muito. Houve algumas complicações e...”; não ouviu mais nada. Útero despedaçado. Foi a hora do rebento. Não foi a hora de ser pai. Que horas eram? Confere o relógio. Já estava ficando tarde. Tudo entardecia. Pega um ônibus para o Irajá. Roda o mesmo trajeto por mais de uma hora. O cobrador quis saber se havia se perdido. “Sim, eu me perdi”. Desce no ponto certo. Cabisbaixo, caminha até o prédio. Havia muita gente, muito carro, vozes e vozes, bombeiro, gás carbônico, cinzas. Alça os olhos para o quinto andar. “Sinto muito”, ouviu de alguém. Depois, não ouviu mais nada. O olhar fixo na fuligem que encobria o que restou dos vidros de sua janela. A fumaça ainda escapava, serpenteando o céu azul-grená de fim de tarde. Fazia tempo que aquele romance não pegava fogo. Ela sempre se queixava. Ela estava lá. Tarde demais para se conhecerem.
Conferiu o gás da cozinha. Agora tinha certeza: não se esqueceu de nada.


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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


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