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terça-feira, 26 de agosto de 2014

O xampu da esperança

Era uma amostra grátis de xampu, hidratante e creme sem enxágue — líquidos espessos cuidadosamente acondicionados em sachês agarradinhos, separados uns dos outros pelos limites dos cortes pontilhados. Os minicosméticos devem ter caído da sacola de alguma passageira desprevenida e acabaram passando um dia ou dois lá embaixo do banco. Pareciam chateados com o incessante vaivém do metrô, que sempre seguia o mesmo destino. A jovem, sempre de cabeça baixa, sentada num dos últimos lugares do vagão, resolveu pegar o pequeno pacote abandonado para conferir do que se tratava. “Essa marca eu não conheço”, pensou. “Vou experimentar no próximo banho”.

Você já deve ter ouvido histórias de pessoas que viram suas vidas transformadas depois de encontrarem dólares, livro, agenda, drogas, arma, fotos, documentos, parentes desaparecidos ou amantes dentro de algum trem. Nossa personagem Dalila passou por metamorfose depois de se apropriar daquele pacote de produtos de beleza. Por que não?

No auge de seus 17 anos, a garota já havia sofrido vários desgostos por causa de seus indomáveis fios capilares — nem lisos nem cacheados, assustadoramente armados, aparentando um constante desafio à gravidade. Depois de conhecer os cosméticos salvadores por meio da amostra e começar a tratar os cabelos com eles (posteriormente comprados em grandes potes e até estocados no armário do banheiro), a menina experimentou uma felicidade de comercial televisivo. Compreende? Os fios se adaptaram bem a uma fórmula. Parecia milagre: uma linha de cosméticos que desse jeito ao capacete de Dalila.

Se você ainda não acredita que cremes capilares revolucionam e convertem, está muito enganado. As aparências fazem toda a diferença, em especial na adolescência, quando criaturas metidas a gente sentem necessidade de parecer belas e se autoafirmar perante a patota. Pense em quantas garotas não sofrem situações diárias de bullying na escola ou são preteridas pelos rapazes príncipes sapos só porque portam madeixas malresolvidas...

Nossa heroína sofreu muito, coitada. Perdeu a conta de quantas zombarias e apelidos nada favoráveis colecionou em sala de aula. Parecia impossível aos colegas não notarem a feiura da cabeleira castanha. Por exemplo, quando Dalila partia o cabelo ao meio, a risca central, bem marcada pelo pente grosso, lembrava o vão formado no Mar Vermelho, quando se abriu em dois para o povo hebreu passar a seco.

A cada ano, a turma encontrava um apelido novo para a menina que, de corpo, era bem torneada, mas estranha no cocuruto. Repito algumas dessas alcunhas: Dalila era chamada de Sansão, Bombril, Assolan, mico-leão-dourado, vassoura de piaçava, cabeça de espeta-caju, cabelo de mel com terra, porco-espinho, pixaim, revoltado, me prende, por favor, e por aí vai. Todos esses vocativos — quando pronunciados em voz alta ou maliciosamente sussurrados por colegas — magoavam feio a alma da menina. Tanto, que ela se tornou do tipo esquiva, tímida, retraída, com presença perceptível apenas pela péssima qualidade do cabelo.

Os fios ressecados, do tipo ouriço, passaram por alisamento, relaxamento, redução de volume, desfrisamento, banho de creme, nutrição intensiva, chapinha, escova marroquina, escova progressiva, definitiva, banho de chocolate e muitos outros tratamentos de choque. Mas a mistura excessiva de química só piorava o aspecto de porco-espinho. E a mãe de Dalila era conhecida no bairro como ótima cabeleireira. Acredita? Só não dava conta de resolver o problema capilar doméstico.

Mas chega de sofrimento! Já faz tempo que Dalila é outra. E em homenagem a sua superação pessoal — e também porque alguns olheiros me advertiram quanto à carga pesadamente dramática das quatro últimas colunas que escrevi —, decidi voltar à libertinagem textual permitida cá ao cronista louco da casa.

Hoje, aos 22 anos de idade, a garota cursa o penúltimo semestre de Psicologia e está superfeliz com seus renovados cabelos. Segura em sua doce feminilidade, mantém relacionamentos amorosos que duram meses; e, conforme me confessou, durante as carícias, chega a permitir aos namorados mergulharem os dedos na farta juba anteriormente piniquenta. Às vezes, ousa deixar o volume à solta, sem nenhuma amarra ou algema, sob o sol e o vento. Enfrenta os espelhos com alegria, mesmo quando desperta. Todo mês separa uma terça parte do salário que recebe no estágio para comprar seus milagrosos potes de xampu, condicionador e creme sem enxágue. Quando aparece um trabalho extra qualquer, direciona parte dos proventos para comprar ainda a máscara de hidratação intensiva, da mesma linha francesa. Vive momentos de êxtase enquanto sente os produtos agirem amorosamente em toda a extensão dos fios. É a mais fiel das clientes e não se cansa de cantar os efeitos reparadores dos produtos.

Curioso para saber os nomes e a marca dos maravilhosos líquidos espessos que Dalila por acaso encontrou como amostra grátis no metrô e que, desde então, protegem a garota contra todo o mal? Desculpe, mas a ética profissional não me permite revelar tal furo de reportagem, — ou melhor, de publicidade. Se eu posso vir a mudar de ideia? Bem, isso depende do valor da oferta que eu porventura venha a receber pelo merchandising de tais cosméticos, ou pelo número de amostras grátis que venham a ser inocentemente esquecidas sobre a minha mesa na redação do jornal.


MARIA AMÉLIA ELÓI


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