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sexta-feira, 15 de agosto de 2014

o veredito

“Eu, porém, vos digo que todo aquele que [sem motivo] 
se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento; 
e quem proferir um insulto a seu irmão 
estará sujeito a julgamento do tribunal; 
e quem lhe chamar: Tolo, 
estará sujeito ao inferno de fogo.”

Evangelho de Mateus, capítulo 5 e versículo 22 




– Ana Lúcia…
A irmã chama-a. 
Vivem as duas: Ana Lúcia e a sua irmã Henriqueta, mais velha do que ela dois anos.
Que se daria para chamá-la, assim, do outro extremo da casa? 
E Ana Lúcia responde-lhe, o corredor já em meio:
– Estou indo, mana.

****

A saleta exala o cheiro típico dos espaços fechados. 
A não ser, como agora, que a irmã a chama, o que é muito raro, Ana Lúcia nunca ali entra. 
São duas da tarde, e é o mês de Junho.
A irmã de Ana Lúcia está sentada junto duma mesinha de camilha. Estaria escrevendo, que ela tem na mão direita uma caneta, quando levanta o rosto a olhar quem entra. 
É muito magra e tem uns olhos tão claros que se diria água em vez de olhos verdes. 
Ana Lúcia entra e aproxima-se, e vai perguntando:
– Tem alguma precisão, mana?
Há ali um candeeiro com abajur cor de vinho. Está sempre aceso aquele candeeiro com uma lâmpada de trinta watt. É um candeeiro de pé alto que nem já se vê muito.
Ana Lúcia senta-se e traça a perna direita por cima da esquerda. 
Ao contrário da irmã, ela é cheiinha de carnes. Assim sentada, deixa a balançar, dependurada no seu pé direito, uma chinela rasa de verniz vermelho. 
E sem que tenha dito o que quer que fosse, a irmã comenta-lhe:
– Não devia usar essa cor que não é para a sua idade. 

E Ana Lúcia reage:
– Para isso me chamou, mana Henriqueta? Valha-me Deus, que o corredor é enorme eu já me canso.
E aquele seu pé rechonchudo, e ainda assim elegante, pequenino como ela toda, balança-o agora Ana Lúcia, de propósito. 
Henriqueta não diz mais acerca do chinelo, desvia mesmo o olhar dele, e fala, num tom baixo, debruçada sobre a irmã, assim como que segredando:
– Pedi-lhe que viesse, Ana Lúcia, para que me recorde. 
E faz uma pausa ligeira, tira os óculos e coloca-os sobre a mesa. E prossegue:
– Diga-me Ana Lúcia, o capitão Meireles… ele era seu padrinho ou era meu?
E Ana Lúcia quase perde a compostura que ainda está encenando depois daquele comentário de Henriqueta à cor do seu chinelo. E descruza as pernas, e assenta os pés calçados com as chinelinhas vermelhas no chão de sobrado muito escuro. Com as mãos, cada uma assente em seu joelho, curva-se para o local em que está Henriqueta e exclama o seu espanto.
– Que ideia a sua, mana! Que pergunta! A que propósito vem isso, diz-me?
Mas Henriqueta não move um músculo do rosto. Os sobrolhos mantêm-se sossegados, e nem um vislumbre do que esteja sentindo. E repete, tal e qual, o que acabou de perguntar:
– O capitão Meireles, era seu padrinho ou era meu?
E Ana Lúcia sem alcançar o motivo daquela pergunta, sem entender por que traz ela à baila aquele assunto, levanta-se fazendo que o corpo tome a atitude, que mostre bem que não quer mais conversa, que sairá porta fora. E responde-lhe deste modo:
– Ora a mana sabe, tão bem quanto eu, que o capitão Meireles era seu padrinho de baptismo, e era meu padrinho do crisma. Que pergunta, mana Henriqueta!
Está realmente incomodada, e fala de modo que não deixe dúvidas. Desagrado e espanto, é o que Ana Lúcia pretende que transvase nas suas palavras:
– Que lembrança a sua, mana. E chamar-me por isso! Que coisa mais sem jeito! 
E faz menção de deixar a sala. Mas Henriqueta arrasta as sílabas, suplicando:
– Sente-se mais um pouco, Ana Lúcia, peço-lhe.
E segura-lhe o braço esquerdo com a sua manápula quase só ossos:
– Só um bocadinho, imploro-lhe.

****


Elas viveram toda a vida naquele prédio, portas meias com o quartel. Artilharia Treze, se Ana Lúcia não está em erro. Do quarto de Henriqueta via-se a parada. No terreno, construíram um prédio para militares em trânsito. Viam-se também as janelas do que era naquele tempo a sala de oficiais. Lembra-se de irem lá, as duas pela mão do capitão Meireles. O pai e o capitão começaram por encontrar-se casualmente e tornaram-se amigos. Gostavam ambos de História do Egipto Antigo e conversavam muito. Tudo isso, antes de elas serem rapariguinhas. E muito antes da avó Bia falecer, quando foi preciso alguém que cuidasse da Herdade, ou venderiam tudo, dizia a mãe e, dizendo assim, estava a pressionar para que o pai tomasse as rédeas do negócio que vinha de família. Essencialmente laranja e tangerina. 
E os pais um dia tinham ido.
Ficaram elas naquela casa enorme. Solteiras e sozinhas, nem saberiam dividir entre elas a casa, se a vendessem, e sobretudo nem saberiam viver numa outra. E ali moraram uma vida inteira.

****

Ana Lúcia tem que confessar que está curiosa. Que a mana explique o que lhe quer naquela sala a cheirar a mofo, e lá fora um sol de primavera. 
E volta a sentar-se, ela que sempre foi a mais extrovertida e a mais viajada. Morreria virgem, mas isso eram manias que nem vinham ao caso. 
E volta a cruzar a perna direita sobre a perna esquerda. Modos de ter sido habituada a estar sentada muito tempo em estiradores altos. Desenho de arquitecto uma vida inteira.
E num descuido de estar mal enfiada, cai-lhe no chão a chinela do seu pé direito. 
Fica uma mancha vermelha a brilhar, indiscreta, no encerado do chão de madeira, na saleta da irmã Henriqueta, sua irmã mais velha, que nem lhe dá tempo de tornar a calçá-la. Henriqueta pontapeie aquele objecto numa cor que ela disse, há nada, achar inadequado que Ana Lúcia use. 
Um gesto tão feio quanto inesperado. 
Uma raiva inusitada que Henriqueta solta sobre a chinelinha da irmã mais nova. 
Assim o sente Ana Lúcia e não se engana, a olhar a chinela que fica tombada junto à ombreira da porta, o corredor em fundo. 
E o pasmo nem deixa que Ana Lúcia decida se vocifere, se vá buscar a chinela e a calce e saia porta fora, ou se simplesmente acate o pedido da mana e a oiça, e deixe a chinelinha encarnada esperando junto à porta da saleta. Ana Lúcia que permanece sentada, e balbucia apenas o seu espanto:
– Mana Henriqueta! Mana, que é isso?!
Mas a mana está muito quieta, muito impávida, muito como se nada tivesse acontecido. Diz-lhe apenas:
– Ana Lúcia, preciso comunicar-lhe coisas urgentes.
E Ana Lúcia toma fôlego, recompõe-se, e recostando-se na cadeira onde está sentada, atira-lhe, ela que sabe ser irónica, armar um fazer de conta que a coisa é divertida quando é um quase drama:
– Então conte, mana! Conte.
O que quererá a sua irmã mais velha? 
E Ana Lúcia, ainda que recostando-se, não se sente confortável.

****

As duas irmãs não morrem de amores uma pela outra. Saberá, disso, Deus. Se Ele realmente existe, é testemunha do quanto elas apenas se toleram. A avaliar pelo que sente, Ana Lúcia não pode afirmar como serão os sentimentos de Henriqueta, mas imagina-os. Que Ana Lúcia não nutre pela mana qualquer sentimento negativo, apenas a trata com todo o respeito, mas com uma estima apenas suficiente para que vivam juntas. E nunca se apercebeu que com Henriqueta seja de outro modo. Se bem que, neste momento, ali sentada, tenha surgido uma nesga de dúvida. Mas Ana Lúcia criou o hábito de não dar valor a atritos, e habituou-se a não gerar discussões. Nunca aconteceram, nunca tiveram uma zanga. 
Ana Lúcia olha de esguelha a chinela encarnada caída junto à porta. 
Um simples sapato vermelho a destoar de tantos dias de serena inimizade.

****

Teriam a idade de andar a terminar o liceu e os pais ainda ali viviam. Ainda era viva a avó Bia e, ainda tinham as duas criadas. Celísia que tinha vindo lá de baixo como a mãe dizia para explicar que a tinha trazido da aldeia onde a avó Bia tinha a Herdade. 
Era costume ser assim, naquele tempo. 
E também trabalhava ali em casa a Ermelinda que não era criada interna. 
Era o tempo em que o capitão Meireles era visita quase diária. 
O capitão que tinha sido, sim, padrinho de baptismo de Henriqueta e depois tinha apadrinhado o crisma de Ana Lúcia. Coisas da mãe delas, que já Ana Lúcia afirmava que não acreditava nem em Deus nem nos santos nem mesmo que Jesus Cristo fosse filho de uma virgem e muito menos que uma nossa senhora tivesse aparecido em lugares da Terra. Mas a mãe chorava e benzia-se, e rezava pela salvação da alma da filha mais nova, e obrigou-a a crismar-se e que o capitão seria seu padrinho. 
Um desgosto, aquela filha, lacrimejava a mãe, e que Henriqueta não lhe dava nenhuns cuidados, acrescentava ainda, a consolar-se.
Foi por essa altura que se deu o caso. Durou de Fevereiro a Outubro, e depois de tudo ter sido deslindado restou o silêncio. Nunca mais tinham sequer referido.
Nunca antes de Henriqueta ter agora inquirido: 
“O capitão Meireles, era seu padrinho ou era meu?”

****

Acontecia que quando vinha em visita, e eram pelo menos três vezes por semana, o capitão Meireles aparecia sempre depois do toque de recolher. Tinha vezes que vinha jantar, mas era muito raro. Entrava, e ia para a sala ao fundo do corredor. Ele e o pai ficavam a conversar, ou jogavam uma partida de xadrez ou uma partida de gamão, e a mãe entretinha-se com um livro ou uma costura. E lá pelas onze, o capitão despedia-se dos compadres e a criada levava-o à porta. 
“Celísia, acompanha o Senhor Capitão”, dizia a mãe, e a criada levava o senhor capitão pelo corredor e abria o ferrolho e tornava a fechá-lo. 
Era assim o costume, fazia muito ano. 
Mas naquele início de Fevereiro, a esse costume acrescentaram-se as entradas no quarto de Henriqueta. 
Nem mais nem menos. 
O capitão ficava com Henriqueta até ser madrugada. 
Uma paixão que se deu e não olhou a idades. 
O capitão ficava com Henriqueta até chegar Ermelinda que vinha ainda nem raiara o dia. E quando a criada entrava, o capitão saía confundindo ruídos. E a disfarçar encontros que houvesse, na escada ou na rua, havia a proximidade do quartel. Que entrava cedo ou saia tarde, diria se fosse necessário. Nunca descobririam. 
Ana Lúcia, ela mesma, só soube, já Abril ia em meio, que Celísia andava apavorada: olhe se a sua mãezinha sabe, menina, caem em mim as culpas. E a rapariga chorava desalmada. 
Ainda falou com a mana a fazer-lhe ver o enredo em que se metera, mas Henriqueta não lhe deu ouvidos e ainda lhe disse: faça como eu, Ana Lúcia, procure quem a deseje. E riu-se dela que sempre se tinha queixado de não ter namorado. Que a deixasse sossegada, exigiu a mana, e Ana Lúcia dormiu horrores de susto nas primeiras noites, depois que soube o que se passava ali por casa. Mas nunca deu pela saída do padrinho, e habituou-se. Esqueceu até o assunto, se possível é dizê-lo, mas é verdade. E não fosse aquele acaso, tudo teria seguido, só Deus saberia até quando. 
Mas naquele início de madrugada, era o final de Outubro, Ana Lúcia debruou-se de dores. Um apêndice infectado, soube já no hospital, já a dizerem: “opere-se”. Coisa feia, e Ana Lúcia, a gritar num descontrole, acordou a casa. E foram pijamas diversos pelo corredor, quase na hora em que chegaria a criada Ermelinda e sairia o capitão que, quis assim o destino, estava a dormir com, Henriqueta nessa noite. E nem foi de ele ter vindo corredor fora e terem dito: “ lá vai ele”. Foi a mãe que entrou no quarto da filha mais velha a pedir ajuda ou simplesmente para dizer-lhe: “Henriqueta, olhe a sua irmã que me morre”, que a mãe delas era muito de dramas. E foi assim que viu o capitão estendido na caminha de solteira da filha mais velha. Dormiam os dois, e nem gritos, nem rumores de passos os tinham acordado. 
E a mãe, misturando lágrimas diversas por cada uma das suas filhas, logo ali terá decidido o que faria, depois que tratasse de Ana Lúcia e daquilo que parecia ser uma apendicite.
E foi radical a sua atitude.
Participou do capitão e de Ermelinda, e nem rogos das filhas, nem rogos da avó Bia e nem conselhos do marido que se deixasse disso, que era a perca da reputação da filha e da família. Que, desse modo, só fazia ainda mais imenso o que já era escândalo. 
A mãe não lhes deu ouvidos. 
Arranjou um advogado que apelou à idade de Henriqueta e à idade do Capitão, e ao facto deste ser amigo da casa, e engendrou uma acusação tal que meteu o capitão na cadeia por dois anos.
E o tribunal militar não foi menos meigo. Ditou expulsão da arma onde o capitão servia, artilharia, salvo o erro, e perda de galões. 
E a mana Henriqueta só não entrou num convento porque ao tempo já não era uso. Ficou fechada em casa meses e mais meses, e nem janela aberta. Terá sido daí que lhe veio o hábito do candeeiro sempre aceso.
No ano seguinte morreria a avó Bia e os pais tinham ido para baixo e tinham levado com eles a criada Celísia, que nunca disse que sabia e nunca ninguém a acusou de ser cúmplice. Ana Lúcia nunca percebeu porque aquela criadita não recebeu acusação da patroa. Mistério que nunca se deslindaria, que Celísia morreu cedo, e nem tinha sido do peso do segredo. Morreu de umas febres. Coisa de frutas verdes e intestinos, tinha explicado a mãe.
Já Ermelinda não teve a mesma sorte. Acusada de incúria e compadrio, levou pena suspensa, e a vergonha impediu-a de voltar a servir. Ana Lúcia sabe que ainda é viva e casada e com filhos, mas nunca mais a viu.
Tudo posto a descoberto pelos gritos infernais do seu apêndice. 
Ana Lúcia sofreu horrores de culpas, que Henriqueta, depois que a irmã veio para casa recomendada de repouso e muito gelo, nunca foi vê-la ao quarto, e na quarentena que a obrigou a mãe, nunca a quis como visita. Mas o passar do tempo acabara por cobrir de silêncio aquele assunto. E Ana Lúcia convencera-se que a mana não lhe guardava rancor. Nunca até hoje, o capitão fora alumiado e menos ainda o caso.

****

Nunca mais até agora. O nome do capitão na boca de Henriqueta. E aquele pontapé na sabrina vermelha. Será apenas acaso? Será apenas o vermelho da chinelinha que a irrita? Ou será um rancor antigo que a mana lhe guarda? 
Henriqueta não lhe dá tempo para mais conjecturas. 
De pé, enorme, ainda mais pela túnica que tem vestido e lhe alonga a silhueta, Henriqueta mostra-lhe uma resma de folhas de papel timbrado. Abana o maço por cima da cabeça da irmã.
– Aqui tem o veredicto, Ana Lúcia.
E lê o que está escrito, num tom de voz que enche a pequena sala e vai decerto resvalando corredor fora. Sempre teve uma voz melodiosa, a mana Henriqueta. 
Ana Lúcia ouve, e cada palavra a deixa mais curiosa e mais perplexa.
Assunto, lê Henriqueta, e prossegue: anulação de processo. E cita datas e números e enuncia nomes, entre eles o seu e o de Henriqueta seguidos, ambos, dos apelidos Furtado e Mello.
Termos de conotação jurídica que ela vai desfiando, conclusões do que terá sido investigado.
Que tinha ficado demonstrado ter a Senhora Dona Ana Lúcia Furtado e Mello, ao tempo a que se reportam os acontecimentos com dezoito anos ainda incompletos, quem dormira, uma noite e outra noite, com o Senhor Capitão Deodato Cerqueira Meireles na própria casa em que morava com os pais.
Ana Lúcia estremece, mas mantem a compostura. Recosta-se mais ainda na cadeira e aperta uma na outra as mãos em cima do colo. 
Henriqueta continua.
Que o Senhor Capitão Deodato Cerqueira Meireles tinha declarado, aquando das inquirições, estar no quarto de Ana Lúcia Furtado e Mello na madrugada (e cita datas) quando a referida senhora teve uma crise de apendicite aguda que a levaria a ser intervencionada nesse mesmo dia. 
E a resma de folhas que Henriqueta segura e vai folheando e lendo numa voz que não esmorece, diz ainda que a criada Ermelinda afirmara nos autos que sim senhora, que era a menina mais nova que recebia no quarto o Senhor Capitão. 
Ana Lúcia nem diz o que quer que seja. Está siderada.
Que irá enviar para os jornais e telejornais, diz-lhe Henriqueta olhando-a e interrompendo a leitura. 
– Saberão do que foi capaz Ana Lúcia.
Ana Lúcia riria se fosse caso disso, mas o assunto merece-lhe seriedade. 
Ela agora percebe.
A mana Henriqueta levou anos a tartamudear no assunto, a ruminar a raiva. A dominar a ira que a faria explodir e ela era uma mulher educada. Conteve-se esses anos todos. Ainda há pouco, e nem teria sido apenas pelo vermelho brilhante do chinelo, quase desmoronou esse edifício construído a pulso. E Henriqueta foi engendrando um novo investigar. Foi imaginando, passo a passo, no silêncio mal iluminado daquela saleta onde tinha sido em tempos idos o seu quarto. Tudo tão real naquele documento que ela mesma terá escrito como se estivesse em tribunal. Henriqueta que estudara Direito e sabia muito bem lidar com os termos.
Está ainda lendo.
Que a mãe das Senhoras Dona Henriqueta Furtado e Mello e Dona Ana Lúcia Furtado e Mello afirmou para os autos não ter qualquer dúvida em consentir que tinha sido no quarto da filha mais nova que encontrara o senhor capitão Deodato Cerqueira Meireles quando foi acudi-la de uma crise de apendicite. 
Um documento credível.
Ana Lúcia nem se mexe, enquanto Henriqueta arruma os papéis em cima da mesa, ainda lendo:
– Omite-se o testemunho de Celísia Imaginário, ao tempo a trabalhar na casa, por ter falecido quando da reabertura do processo em epígrafe. 
E olhando-a com aqueles olhos quase transparentes, Henriqueta convoca-a:
– Esteja presente na Quinta Vara amanhã pelas dez horas.
Se a mana lhe tirasse a outra chinela e a sovasse, nem seria maior o espanto de Ana Lúcia, nem ela veria mais imensa a raiva de Henriqueta, o seu desejo de vingar-se dos gritos que Ana Lúcia tinha dado naquela madrugada distante, dolorida de uma apendicite grave. 
Uma ira que Henriqueta conteve esses anos todos. 
Mas Ana Lúcia estremece sobretudo perante a loucura que adivinha. 
E não diz uma palavra. 
Levanta-se. Recupera a chinela que ali mesmo calça, e sai da saleta. 
E só quando o corredor vai em meio, ela exclama, e ainda assim num tom baixo:
– Felizmente terá já prescrito, ou a minha mana ainda me enviava para a cadeia.
E sorri-se enquanto pela casa ecoam, estridentes, os gritos de Henriqueta:
– Volte aqui. Volte que ainda não terminei.
E é a figura erecta de Henriqueta assomada na porta da saleta.

E restará o silêncio que nunca mais será um silêncio como afinal apenas parecia ser.




texto integrando a antologia 7 pecados da Pastelaria Editora

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4 comentários:

É sempre refrescante encontrar por aqui um conto que dá gosto ler. Já me tinha deliciado com ele quando o li na primeira publicação, em maio de 2013. ;)

eu bem me parecia que desta vez tinha mesmo repetido :)

Que trama! Ainda bem que sou filha única! Com uma irmã dessas, quem precisa de inimigos? Texto como só você consegue escrever tão bem, cheio de voltas e reviravoltas. Muito bem construído mesmo. Prendeu minha atenção do começo ao fim.

Vidas pequenas, gestos pequenos, dramas imensos. Havendo alguém que decifre aqueles para nos revelar estes.

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