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quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Saudade

Era triste aquela minha vizinha do 202. Tudo nela era triste. Seu andar, seus gestos, até suas roupas eram tristes. Só não lhe via os olhos, sempre baixos. De comum comigo, talvez a mesma idade e o fato de morar sozinha. Assim eu imaginava, porque não percebia movimento em seu apartamento. Eu vivia sozinha por opção. Escrevia o dia inteiro. Só parava para tomar banho ou comer alguma coisa, pouca, que não sou de comer muito. Minha vida, trágica, merecia um livro. Tão dedicada estava nesse projeto, que não tinha tempo sequer para me olhar no espelho. Fazia meses que não o usava. Mal saía às ruas. A não ser, bem cedinho, para comprar pão. Foi assim que conheci aquela mulher tão sombria. Coincidentemente, saíamos à mesma hora. Como eu, ela parecia não gostar de elevador. Descíamos as escadas, caminhávamos até a padaria, voltávamos e subíamos as escadas, sempre juntas e mudas, apenas ligeiros acenos de cabeças. Nessas idas e vindas, bem queria puxar conversa, mas faltava-me coragem. Tanta melancolia me inibia. Aquela mulher não me saía da cabeça. Por que tão triste? O que teria acontecido em sua vida?... Matutava, curiosidade despertada. Uma vez ousei, toquei sua campainha, com um pedaço de bolo que acabara de assar. Nem era de assar bolos, mas precisava de um pretexto para me aproximar. Abriu a porta, sorriu aquele sorriso triste, olhos baixos. Meio sem jeito, ofereci-lhe o prato e perguntei-lhe o nome. “Saudade” – disse, num fio de voz. Recusou gentilmente, não comia doces, agradeceu-me e fechou a porta. Voltei para o computador, pasma. Saudade?! Isso lá é nome?!...  Curiosidade aguçada. Não conhecia ninguém naquele prédio, antissocial que sou, reconheço. Meus vizinhos também não eram muito melhores. Nas raríssimas vezes em que cruzei com alguns deles, passavam cabisbaixos, me olhando de soslaio – e, para ser sincera, achava bom. Cada um na sua. Só que agora me deparava com um dilema. A quem perguntar sobre a vizinha? Saudade... Bem, a solução poderia ser a reunião de condomínio que aconteceria dali a três dias. Nunca comparecera a nenhuma, verdadeiro pavor que tinha de reuniões, principalmente as de condomínio. Na próxima iria, decidi. Lá, daria um jeito de saber mais sobre Saudade. Chegado o dia, compareci, atrasada é fato, mas compareci. Vencendo o pânico, atravessei o saguão sob olhares curiosos, dando uma geral, mas Saudade não estava lá. Vai ver tínhamos mais este ponto em comum, não gostar de reuniões de condomínio. Não dei qualquer opinião que, aliás, ninguém me pediu, nem prestei atenção no que falavam. Só esperava uma brecha para perguntar se alguém conhecia a vizinha do 202, não diria o nome, claro, para respeitá-la. Diria que estava preocupada porque não a via fazia tempo, morava sozinha, coisas assim. Na primeira oportunidade, perguntei, olhando para todos e para ninguém especificamente. “Mas aquele apartamento está vazio faz mais de ano!” – exclamaram. Pairou no ar um silêncio pesado. Olhavam-me assustados, e eu me senti desestruturar. Sai dali abruptamente e tão descontrolada que, pela primeira vez desde que morava lá, entrei naquele elevador, parado no térreo com a porta aberta. Foi então que me vi, refletida no revestimento de espelho. E era Saudade quem me devolvia o olhar desamparado, alucinado, insano...

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37 comentários:

Que texto intenso! Tem dor, nostalgia, solidão mas também esperança nesse encontro consigo mesma. Ver-se é a parte mais difícil para cada ser humano. Descobrir-se. Parabéns pela bela estreia!

Belíssimo texto ! Não é pequeno o impacto quando nos vemos de fora, por assim dizer.
Parabéns a autora.

Parabéns amiga Cecilia Maria De Luca, pela estreia na revista e pelo envolvente texto...

Complimenti Cecilia .....bello

Esses nossos encontros, que a própria vida dá um jeito de "arranjar"... parabéns pela belíssima obra...

complimenti Cecilia ... Brava

tenho a impressão que o fosso do elevador desse prédio se abre para o sem fim, o mesmo espelho reflete minha imagem e ainda assim, depois de ler e mesmo por isso, sigo em busca de semelhança - é assombroso o clima da narrativa. parabéns cecília.

Oi, querida Cecília! Sei que já comentei esse texto em outro local - inbox do FB, acho... Lembro de você perguntando se era bom. Disse lá e repito aqui: bom demais! Para quem se busca a estrada é longa, sinuosa e repleta de mistérios, mas vale o cansaço, né? Beijos e boa caminhada!

Muito interessante, Cecília! À medida que lia, imaginava que iriam informar que ela era a moradora do 202... Mas o espelho é ainda mais brutal. Parabéns!

Esse texto é lindo... Quem de nós não tem um pouco da "Saudade" dentro de si?! Mas encararmo- nos é fundamental para esse mergulho intenso dentro do EU, só assim crescemos, e nos tornamos seres ricos e interessantes... senão, não passaremos de retrato na estante... Intenso, tocante, emociona, Cecilia, nos leva a buscar nosso espelho... ao autodescobrimento. Parabéns!! Beijos

Profundo e angustiante. Mexe com as nossas angustias existenciais .E nos emociona.
Parabéns Cecilia!

Simplesmente digno de uma grande escritora.
E saber que muitas outras saudades estão espalhadas por aí...
Parabéns e sucesso!

Um texto com a marca da Cecilia: sensível, intenso, inteligente, envolvente, tudo alinhavado por um estilo requintadíssimo! Parabéns, amiga! Grande estreia em uma grande revista.

Digno de uma grande escritora!
E saber que tantas outras saudades estão espalhadas por aí...
parabéns e sucesso para você!

Adorei! Li e reli... grande "aquisição" da revista. Vou acompanhar os futuros textos!

Sensacional! Cheguei a arrepiar!
Parabénssssssssss

As palavras da autora encontram eco em muitos de nós... Texto sucinto, mas com a profundidade textual de quem sabe mexer com as palavras...
Parabéns...
Fernando De Luca

Parabéns Cecília, você consegue prender nossa atenção do começo ao fim, um conto aparentemente sombrio, que bem manejado, nos transporta para o êxtase do encontro com a alma e portanto da renovação da esperança. Coisa assim, de bom escritor mesmo.Gostei muito e quero mais.

Hoje foi um dia feliz. A minha estreia na Samizdat não teria qualquer brilho sem a participação de vocês. E foram tantas que fiquei surpreendida. Os comentários carinhosos, não só aqui colocados, mas também, via e-mail e facebook, me deixaram pra lá de emocionada e orgulhosa. É com o ego nas estrelas e o coração balançando que quero agradecer aos amigos, conhecidos, e até à pessoas que não conheço, pelas palavras elogiosas que me motivam a continuar nesta tarefa deliciosamente árdua que é escrever. Agradeço também, à Revista Samizdat que, ao me aceitar como colaboradora, proporcionou a exposição do meu trabalho. Do fundo do meu coração, o meu muito, muito obrigada.

Belíssimo conto! Belo como um poema de Quintana! Ah, esses espelhos...

Maria Felipe Cavalcanti, sua leitura me deixou muito feliz, tanto mais porque não tenho a honra de lhe conhecer. Quintana é um dos meus ídolos e sua comparação, apesar de me envaidecer, me faz reconhecer limites que ainda tenho e preciso superar. Saiba que estou profundamente agradecida e emocionada. Aproveito para estender esse agradecimento a Félix Matos Mourão e Guilherme Albano, pessoas que também não tive o privilégio de conhecer e que me prestigiaram com a leitura do texto. Abraços a todos vocês..

Bela estreia, Cecilia!

Seu texto me deu uma rasteira, sabe... Uma angústia o envolve e toca o leitor. Levar um pedaço de bolo para a saudade? Alimentar a saudade? Não. A saudade não quer ser alimentada... Ela reflete a ausência, de tudo, de todos. Revela-se no olhar que se esquiva dos espelhos.

Obrigado por inaugurar minha manhã de sábado tão bem, Cecilia!
E seja bem-vinda!
Lohan.

Puxa, Lohan, obrigada pela leitura e belíssimo comentário! A todos vocês que se aqui se manifestaram, via facebook, Ana Laura, Albertina, Pat, Elizabeth, Lauer, Sil, Gladis, Ana De Luca, uma grande abraço de gratidão.

Que magia encontrar-se consigo mesma...reconhecer-se numa pessoa que te incomoda mas que é como você...belo texto.

Simplesmente espetacular! Mas que ideia fantástica essa. Levar lá para fora um sentimento tão íntimo, tão pessoal, de uma forma tão bela, inusitada. O texto prende, surpreende, inebria e ... entontece, por que não? Sim, entontece porque ela se vê (e faz com que nos vejamos) de uma forma súbita, surpreendente, inesperada, como a nos desnudarmos. Não deixa de ser um alerta para o nosso dia-a-dia, para as nossas opções de vida. Muito bem escrito. Grande colaboração. Nota 1000!

um suspense profundo em nossas almas deixando-a suspensa! Obrigada por esse deleite, Cecília!

Parabéns Cecilia Maria!!!
Seu texto me emociona, me angustia, me comove e me alegra!!
Martha Giannotti

Essa escritora, que conheci há pouco tempo, mas conquistou meu coração pela gentileza e doçura, me pediu outro dia que lesse o texto e desse uma opinião sincera. Acho que todo mundo precisa dessa aceitação. Quando isso vem de quem sente o mesmo amor pelas palavras, então a gente acredita um pouco mais. Mas, acho que é importante pensar, que independente de qualquer opinião, temos que acreditar no potencial e na sensibilidade que temos para brincar com as palavras, ideias e sentimentos. É tua missão escrever Cecília, e não pare nunca, querida. Palavras como as desse texto, não são apenas bonitas. Nos levam a refletir. E para quem souber aproveitar, nos levam a melhorar e evoluir também. E dá-lhe palavras!

Olá, linda Cecilia!
Puxa! Pude me enxergar nas duas mulheres... nesse sentimento de não querer, de fato, pertencer ao mundo. Sou muito anti-social. Gosto mesmo do "meu canto". Nada de festas nem de aglomerações... sou mesmo muito "chata"! hahaha!
Mas deixo aqui a minha admiração por este magnífico "reflexo" da saudade neste vasto espelho que é existir. O seu texto prende do começo ao fim... e fiquei aqui... com a linda e ambígua Saudade... a que reside dentro de mim... de mãos dadas com a que reside em seu vasto e belo universo poético.
Receba o meu carinhoso abraço e a minha admiração pelo seu trabalho!
Com o meu sempre carinho por você:

Karla Mello

Parabéns! Belo texto. Já estamos com saudade do próximo.

Maria Amélia, Karla, Martha, Leila, Ceres e demais leitores que comentaram meu texto, quero que saibam que estou mais do que agradecida. Estou mesmo muito feliz e emocionada com conteúdo de seus comentários. À medida que os leio, penso na imensa responsabilidade de escrever sempre e cada vez melhor para agradar público tão generoso e inteligente. Procurarei sempre corresponder à expectativa de vocês. Um forte abraço a todos.

Belo texto Cecília, penso nele denso, ao dar pistas de que seguia o mesmo caminho de uma igual, mas surpreendendo ao final, sendo. Poucos têm oportunidade de encarar seu verdadeiro reflexo, penso que muitos, nem sobreviveriam a isto.

Beijo e linda vida!

Parabéns!

Pois é, Cecília, a solidão, que acho, por vezes boa, nos prega cada uma... Belo texto, mais intimista, impossível.
Otávio Martins.

Querida amiga Cecilia, adorei o texto. Parabéns, você é uma revelação.
Beijo. Maria Inês Sahd Corrêa

Uau! Texto de tirar o fôlego. Parabéns, amiga Cecilia. Terminou o texto com chave de ouro. Adoro finais assim... reflexivos, introspectivos, inteligentes. Beijo grande!

Nathália, Maria Inês, Otávio Martins, Joakim Antonio, muito obrigada pela leitura e comentários. Imensamente feliz por terem me prestigiado.

Parabéns à Revista Samizdat pela brilhante escolha da escritora Cecília Maria De Luca como Colaboradora Fixa, pois, assim, estará proporcionando a nós, leitores, o prazer de ler Cecília De Luca. Belíssimo e bem escrito conto. Suave e denso, leve e profundo, com um final insólito. Cecília Maria De Luca é pura emoção. A você, escritora, meus parabéns e um enorme desejo de sucesso na fantástica empreitada. Patricia Andrade.

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