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quarta-feira, 6 de novembro de 2013

DONA MÁRCIA NA JANELA




                              DONA MÁRCIA NA JANELA



– É, amigo, e quando eu digo que essas coisas são muito importantes, o povo faz o quê? Critica-me!
– Pra você ver... Mas me diga, não lembro bem da história...
– Como não? Caiu aos ouvidos de tudo que é gente, vixe Maria!, diacho de gente fofoqueira nesse mundo!
– Oxe, mas não lembro mesmo, meu caro. Ande, lembre como foi que se sucedeu.
– Olhe meu amigo a história é um tanto longa, sem falar que as paredes têm ouvidos de tuberculoso!
– Ora!, estamos em plena rua, qual parede nos ouvirá?
– Você duvida que as do Palácio da Justiça, do Teatro de Santa Isabel, ou do Palácio do Campo das Princesas? Um lugar com tantos palácios só pode ter muitos ouvidos!
– Mas tudo bem, vamos ao primeiro bar que encontrarmos e enquanto isso você me fala baixinho.
– Olhe, o boato começou de forma abrupta, sabe não? Depois daquela ida do doutor Lopes à casa do compadre ele terminou por voltar acabrunhado. E acabrunhado com o quê?, ora!, com tudo! A dona Márcia Pontes, primeira dama do Doutor Siqueira deixava não o homem em paz!
– Oxe, mas veja, meu caro amigo, essa sua conversa é meio perigosa... Você tá falando de dona Márcia Pontes Siqueira, a mulher de Doutor Bernardo Siqueira do Lehro, juiz da capital?
– Ora, e quem mais tem esse nome brilhante? Um luminar, S. Exa.! Pena que... Enfim, por isso é que estamos falando baixo. Quase em sussurros, e olhe que o que lhe conto não é conversa inventada não, qualquer aparência com a mentira é pura implicância da mentira, confesso que seja uma fofoca que vai dar o que falar, que já ouvi dos outros e só reproduzo pro amigo uns pequenos pormenores, mas olhe, se trata da verdade, e ela, a verdade, é a única que tem de ser dita, não? E então! O homem voltou acabrunhadíssimo! E quem diria, uma simples estadia na casa de praia do doutor Siqueira! Deus o acompanhe! Ele, o pobre, um Excelentíssimo! Titular da Faculdade de Direito e tudo...
– Mas ora diga, dona Márcia também não me parece menos excelente, é uma Vestal, e de Vestal tem tudo, menos a nacionalidade romana.
– Ah, mas o amigo exagera! Acho que deve ser a cerveja que já nos chegou ao juízo, e falando nisso, muito boa a cerveja, pena que só se acha a danada na Rua do Bom Jesus depois de se implorar ao dono do bar pra que fique aberto um tempinho a mais...
– É que a prefeitura não gosta de Jesus, nem ruim nem bom, razão pra deixar essa velha Rua dos Judeus, tornada do Bom Jesus, às moscas de segunda a sábado! Mas confesso que me exagerei um pouquinho, afinal, se dona Márcia fosse uma Vestal, não teria dado a nosso camarada Excelentíssimo os dois filhos raparigueiros que deu!
– Devo confessar que sim! Mas veja, você já compreendeu a história toda? Eu não quero dizer nada sobre nada, isto é, não quero afirmar o que não posso, mas acho que no fim das quantas S. Exa., além de excelente é bastante esperto.
– Ah, você acha?!
– Mire só: doutor Lopes andou dizendo nos corredores da Ordem que ficou um tanto acabrunhado porque sempre que ele ia tomar banho na piscina, a dona Márcia pairava na janela como Deus sobre a face das águas...
– Mas, olhe só, essa história não tinha um acento pior bem aí nesse ponto?
– O amigo lembra ou não da história?
– Acho que vou me lembrando, mas me auxilie!
– Pois então, o doutor Lopes tem o hábito de se banhar nu...
– Vixe, Maria!, é isso mesmo! Lembrei foi de tudo agora! Essa parte, pelo asco que me dá é que faz meu cérebro jogar tão nojento conteúdo no limbo!
– Hahahhaha! O amigo deve bem saber que esse hábito naturista do doutor Lopes é bem normalizado, não?
– Normal? Se isso é normal imagina o que não seja! O homem é convidado à casa de praia de S. Exa., e toma banho na piscina à flor da pele, e dos pelos, por que aquele lá tem mais pelos que o Tony Ramos!
– Hahahhaah! Pois então, digo normal, atendendo ao argumento do próprio doutor Lopes, no sentido de que ninguém toma banho com roupas!
– Ora, faça-me o favor!
  – Enfim, voltando. Dona Márcia na janela, o tempo todo, por um motivo, por outro, uma perdição. E pior, dona Márcia, de já desgastada pelo tempo podia nem mais dar ao membro do causídico as ganas de subir! Mas veja, o problema estava de pé e se seguia. No terceiro dia de tanto voyeurismo da velha Vestal cansada de guerras puras, o doutor Lopes voltou pra Recife e foi espalhar o acontecido na Ordem.
– Um fofoqueiro sem noção!
– Pois é, um grotesco fofoqueiro!
– E em razão disso que...
– Justamente em razão disso que S. Exa. se separou, divórcio de juiz, uma coisa lastimosamente feia.
– Nossa senhora! Eu quebrava era o doutor Lopes!, indeferia todas as suas petições e justiça seria feita!
– Mesmo que ele defendesse um pobre coitado injustiçado, compadre?
– Mesmo que ele defendesse a minha mãe!
– Pois eu ainda digo, que o que vai espantar o amigo é o que vem no depois. Isso porque, S. Exa. se separou de dona Márcia, mas dona Márcia não queria separação nenhuma. E cansaram de dizer à velha, que ainda seria bem melhor separar-se hoje, já que os tempos são outros e não existem mais aquelas restrições às mulheres separadas na alta roda. Com a pensão que ganharia, e uma vez que os filhos perambulam, todos de maior, na Europa, a velha poderia ficar com seus playboyzinhos e viver a vida à la belle époque! Mas a velha insistia que era inocente das acusações e que nada daquilo tinha acontecido...
– Eu ouvi que disseram que ela tinha dito...
– Manobra! Pois é, ela disse que tinha sido vítima de uma manobra... E queria abrir um processo...
– Disso eu não sabia. Contra o doutor Lopes?
– Contra S. Exa.!
– Ora!
– Pois é, não disse que o amigo se espantaria! O doutor Siqueira, um luminar, titular e tudo, disse que ela o processasse se tivesse coragem. E depois o fato pronto.
– Como assim, “fato pronto”?
– Doutor Siqueira não se casou de novo, homem?!
– Sério, e eu nem sabia! Tava no Chile, às voltas com um negócio novo, mas e com quem?
– Com aquela técnica judiciária que trabalhava no cartório dele para a qual olhava com tão bons olhos... Todo mundo sabia dos olhos, ninguém imaginaria as bodas. Pois nem um mês se passou da separação de dona Márcia que já se casou com a Verinha, a tal técnica. Vinte e três anos de suculência, Deus que me perdoe!
– Mas, oxe..., Isso me parece...
– Pois é, vejo que o amigo entendeu o desígnio mais íntimo de S. Exa., e nem precisou ser Deus pra isso!
– Mas você acha que ele estava mancomunado com o doutor Lopes, é isso?
– Amigo, sei não lhe dizer o que certamente foi, mas eu acho que “há mais razões entre o céu e a Terra do que sonha nossa vã filosofia”, como já disse o Hamleto! Pode ser, pode não ser.
– Pobre dona Márcia! Agora entendo a tal “manobra” que alegou... A pobre na janela...
– Por isso que digo ao amigo que esses brocardos latinos e essas frases que os romanos inventaram são muito importantes... Implique quem queira, eu não ligo!, são e são mesmo. E, certo estava o Júlio César: “à mulher de César, não basta ser honesta, tem que parecer honesta”!
– Que novela, hein?, a velha boba, o velho lascivo e a donzela sem vergonha..., Coitada de dona Márcia, ficará para sempre na janela... Ah, as aparências... Num mundo onde a deusa protetora é cega, são as únicas coisas que contam...
– Isso aí já foi o amigo que disse, e falando nisso, olhe a hora!, espero não estar visivelmente tomado pela cerveja, pois vou despachar um processo meu lá no gabinete de S. Exa., doutor Siqueira...
– Aproveite e mande meus votos de felicidades e brios ao casório, a S. Exa., e à digníssima!
– Que digníssima, dona Márcia?
– Dona Márcia já deu, a ela apenas a janela, falo da esposa atual, um bolo de rolo de doçura... Digníssima!
– Ah, claro! Pode deixar, certamente mandarei. Até!

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