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sexta-feira, 15 de novembro de 2013

tinha uma pedra




Foi nos instantes imediatamente antes e durante de Feliciana se sentar na pedra.
Era um calhau igual a tantos que havia pela praia, não fosse destoar das restantes por ser tão lisa. E seria de ser batida pela água e pelo sol, sovada pelas ventanias que levantavam areias. Fosse de que fosse, era um pedregulho liso o que a acolheu como se de um verdadeiro assento se tratasse.
Uma poltrona rija e desconfortável, mas uma poltrona.
Estava o Outono quase a despontar e nem vivalma  pelo areal. Feliciana tinha por costume vir, assim, ao clarear do dia. Vinha em passeio, respirar o ar salgado, caminhar um pouco, tomar um banho se desse. Ficar tão só magicando a enterrar na areia morna os pés descalços.
Feliciana respirou fundo a sentir o perfume intenso do iodo. E, como tinha por costume, entreteve-se a apanhar cascas de búzios, conchas, pequeninos calhaus, pedrinhas soltas.
Enchia com essa tranquitana as algibeiras do vestido que trouxesse ou levava-as embrulhadas no regaço.
Feliciana que sempre achara curioso que tanto nesta vida fossem pedrinhas, umas mais soltas do que outras.
Pensara isso num dia em que descobriu, na estante, meio esquecida entre pastas e livros, a lousa preta onde aprendera a desenhar as primeiras letras, a mesma onde jogou  tanto ao jogo da forca.
Ontem a neta pedira-lhe: avó empresta-me a tua pedra, que era como Feliciana chamava à lousa, aquele rectângulo de xisto negro debruado a madeira.
E terá sido disso que naquela manhã Feliciana vinha cismando a andar na areia.
Cismava em como tanto de cada um de nós se produz em torno de pedras: ou que seja o material de que é feito o balcão onde fazemos as refeições, ou o tanque onde esfregamos a roupa – já não se usa, mas era dantes e ainda é assim em muito recanto do planeta e haja água e que nunca a energia se esgote ou teremos que tornar aos métodos das  nossas avós.
Feliciana cismando em torno das pedras da vida da gente que poderá ser a, assim designada, pedra nos rins ou na vesícula. Ou a alguém, por sina ou destino, cai-lhe uma pedra em cima. Ou subimos àquela pedra mais alta a escalar um monte. Ou fitamos o fim do horizonte numa falésia a pique sobre o mar.
E é também uma pedra a enfeitar o anel do bispo e o anel de fim de curso ou o anel de noivado.
Pedras no nosso caminho a cada instante, é uma realidade.
E Feliciana sorriu-se do que ia magicando, e lembrou-se do pedacinho de xisto torneado em redondo que em dias muito idos lhe servia de lápis: ela muito menina e agora o neto a imitá-la.
E, nessa sucessão de pensamento, Feliciana evocou as pedrinhas que compõem os mistérios de um terço.
Tantas pedras na vida da gente! balbuciou Feliciana e sorriu um sorriso triste, que ela já pensava em outras pedras que são metáforas que fazemos. Verdadeiros pedregulhos, essas.
E  indo nisso, caiu-lhe para o ombro a alça do vestido.  Aquele vermelho já coçado do uso. Feliciana gostava dele: a saia a roçar o tornozelo e as alças finas a segurarem um decote que quase lhe descobria os seios.
Ajeitou o pedaço de tecido e foi disso que a mão sentiu o montinho sob a pele. Foi no mesmo instante em que Feliciana descobriu a pedra lisa, quase cor de rosa, ou seria branca, ou seria de um tom claro de castanho. Uma pedra enorme que era quase um cadeirão a convidar que ela se sentasse.
E Feliciana sentou-se.
E a sentar-se, ela vinha já debruçada sobre o próprio corpo, quase a fazer uma argola na tentativa de ver o que seria aquele sentir estranho por debaixo dos dedos.
Apalpou e era como se fosse uma pedrinha mais saliente no meio das pedrinhas que lhe rolavam debaixo dos pés.
E levantou-se. E andou os passos, poucos, que a separavam da água deslizada sobre outras, muitas pedras. Pedras revestidas do verde e negro dos limos. Pedras a fazerem covinhas, a aninharem água transparente e a refractarem, enormes, delicados bichos multicores. E Feliciana foi saltitando os pés descalços sobre as rochas naquela maré vaza muito escoada e, nem que não quisesse, as lágrimas rolaram-lhe pelo rosto.
Ou nem terá sido mais do que a maresia a depositar-se na perle dela, igualmente pedrinhas infinitamente pequenas de sal dissolvido em água.
Feliciana acabada de perceber aquele duro no seu corpo, lembrou-se do poema.
Letra a letra, foi balbuciando cada verso.
No meio do caminho tinha uma pedra. / Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Depois, caiu-lhe um a um o cabelo, que nem ela o cortou, antes, e teria evitado que tivesse ficado aquele desastre. À pedrada, como a mãe dizia dos cabelos mal cortados. Se bem que nunca tenha percebido, porque chamavam assim ao cabelo muito curto, desarrumado na franja e no pescoço. Mas Feliciana percebeu que o dela foi ficando assim, tal e qual.
E colocou boinas ou um lenço. Ou nada, simplesmente.
E não fosse o sorriso dele a sorrir-lhe. Não fosse a voz com que lhe dizia, sucessivo, generoso: obrigada! pelo que quer que fosse ou sem ser por nada. Não fosse o rolar das pedrinhas do terço entre os seus dedos: uma conta e depois a outra, mesmo quando Feliciana balbuciava apenas palavras inventadas em vez das orações.
Não fossem as pedrinhas que trazia da praia embrulhadas na roda do vestido ou a encher algibeiras.
Não fossem os desenhos: isto é um cão, isto é uma flor, dizia ela ao neto.
Não fossem as pedrinhas, que era o que semelhavam ser os olhos dele. Os olhos dele tal e qual os olhos do neto que lhe pedia: avó desenha outro.
Não fossem os versos do poeta a lembrar-lhe: no meio do caminho tinha uma pedra, e a repetirem em outro verso, trocando apenas o local onde estava escrito o predicado.
Não fossem, esses e outros a taparem aquela pedra do seu caminho como se fossem flores, e Feliciana não teria ido.
Não fosse o veio branco sobre o negro do xisto, e o sem cor teria invadido a sua vida.
Não fosse, e ela não teria ficado manhãs inteiras longe da chuva que caía, ou do sol radioso, o líquido a escorrer lento, demasiado lento tantas vezes.
Feliciana, horas, dias, meses, a encarar o pedregulho.
Feliciana a balbuciar baixinho:
No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho.


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6 comentários:

Pura poesia em prosa. Melancólico, mas muito bonito. Realmente me encantei com este conto.
Parabéns.

Pura poesia em prosa. Melancólico, mas muito bonito. Realmente me encantei com este conto.
Parabéns.

Ah, Fátima! Que eu me acabei aqui! Que essa pedra ida nunca mais esteja no caminho. Que Feliciana ainda se entregue a catar pedras com os bisnetos. Que todas as pedras do caminho virem poesia em prosa. Para todas as Felicianas de boinas e lenços.
Este texto é uma oração, amiga! De uma beleza triste e sem alarde. Amém! .

Que maravilha de texto, narrado com estilo de escritora que sabe o que faz. Comovente, me comoveu até às lágrimas, pedras desfeitas em sal pelo rosto. Parabéns à autora. Não a conhecia. É o primeiro trabalho dela que leio e já virei fã.

O que vale é que a pedra no meio do caminho deixa livre as metades dele.
Pode-se ir por um lado - ou talvez pelo outro?
Ou então, rindo, sentemo-nos em cima da pedra e, depois de descansar, continue-se em frente pelo caminho...

Olá Fátima, por intermédio da nossa amiga Manela, vou conhecendo os seus dons. Gosto do que escreve e também do que escreve com o pincel. Os meus parabéns pela sua arte. Um beijinho com amizade. Maria José Barroso.

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