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sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Dois saquês

Martinha e Fernando entraram no japa. Foi ela quem tomou a iniciativa.
Como sempre.

- Boa noite, a gente gostaria de um tatame.

A falsa gueixa de passos curtos levou o casal gentilmente a um canto do restaurante,
onde havia dois tatames separados por um biombo de palhinha. Tiraram os sapatos,
acomodaram-se no da direita, esticaram as pernas, espreguiçaram-se entre as almofadas.

- Por favor, dois saquês gelados, para começar.
- Como é que você sabe que eu quero saquê, Martinha? 
- Você sempre quer saquê.
- Hoje eu queria uma coisa diferente.
- O quê?
- Eu mesmo pedir meu saquê.

Mais dois saquês.
Atracados à barca de sushis e sashimis, Martinha e Fernando mal se falavam.

- Cheira aqui, Martinha… esse atum está meio passado.
- Psss, Fernando… fala baixo.
- Mas não falei nada de mais…
- Psss… estou ouvindo a conversa ao lado.
- Que mania, Martinha… Para com isso.
- Psss, estou reconhecendo essa voz… meu ginecologista!
- Que %$#&@ é essa, Martinha? Não era a Dra. Esther Basbaubabaum, Basba… 
sei lá o quê?
- Psss, fala baixo… eu mudei. A Esther fez uma barbeiragem com a Lucinha.
- E isso é motivo para você ter um ginecologista homem?
- Fernando! Está com ciúme do meu ginecologista? Era só o que me faltava. 
Que doença! Ciúme do dentista, ciúme dos meus ex-namorados, ciúme dos colegas do trabalho, 
ciúme do motorista de táxi, ciúme do professor de natação do Nandinho… Vai se catar, Fernando, 
vai fazer seu exame de próstata! Está mais do que na idade!

Mais dois saquês.

- Martinha, você me ofendeu. Você sabe que não admito nem supositório. 
- Fernando, seu burro, o tatame ao lado deve estar às gargalhadas ouvindo sua estupidez.
- Eles nem estão prestando atenção na gente. Seu ginecologista é que deve ter reconhecido a sua voz. E deve estar pensando na última consulta. Quando foi?
- Ontem. Ontem à tarde, e daí?
- É por isso que você não quis transar comigo à noite. Estava saudosa daqueles dedos longos, 
curiosos, investigativos… Essas mulheres… A ex-mulher do Walter, a Verinha, jogou na cara dele 
que tinha orgasmos com o ginecologista. Era só tirar a calcinha, vestir o avental ridículo, 
abrir as pernas e já começava a gemer baixinho, antes mesmo do cara vestir as luvas. 
Mulheres. Depois dizem que homem não presta.

Martinha baixou a cabeça. Silêncio. Os olhos se inundaram. Bebericou um tantinho de saquê,
olhando de viés para o infinito das tramas do chão do tatame.
Nada mais desconcertante para Fernando do que ver a mulher magoada. Aconchegou-se ao seu lado,
passou o braço pelos seus ombros, encostaram-se as cabeças.
Mais dois saquês.

- Desculpe, Martinha. Acho que foi saquê demais.

Martinha esboçou um soluço. Mas não desarmou o bico.
- Tudo bem, Fernando, tudo bem… 
- Desculpe, Martinha... não fica assim. Foi só um comentário infeliz.  Martinha… 
olha para mim... prometo não magoar você, prometo me cuidar, prometo me curar…
- Fala baixo, Fernando. 
- Prometo falar baixo… prometo tudo...
- Tudo? 
- O que você quiser., meu anjo.
- Descobre o telefone da Verinha. 

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20