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sábado, 4 de maio de 2013

A Bandeira



Sempre gostei dos filmes do Chaplin, principalmente Tempos Modernos, que também é um dos favoritos do meu filho. Isto significa dizer que assisti ao filme umas duas ou três vezes até o ano passado, e umas vinte e oito vezes desde então... Sei que todos se recordam da cena em que Chaplin é tragado pela máquina, sem parar de apertar seus parafusos. Mas a cena que me vem à mente é outra: aquela em que ele vê uma bandeira cair de um caminhão e, tentando devolvê-la, saindo atrás do veículo, acaba sendo visto por todos como o grande líder de uma passeata de trabalhadores.


Tive meu momento, digamos, chapliniano, ainda que involuntariamente, e que poderia ter me tornado um grande nome da política nacional. Infelizmente, só tinha sete anos.


A escola havia marcado o “desfile” da Independência para a sexta-feira, dia 5. Passamos a semana pintando as bandeirinhas na sala de Artes e ensaiando o hino nacional, ouvindo a professora falar alguma coisa sobre a grande data. Todos fomos conduzidos, em fila, para a quadra de esportes. As arquibancadas estavam lotadas – uma dúzia de professores e os alunos dos outros anos.

Mas algo havia saído errado. De repente, todos se viraram para mim – algo que me intimida até hoje - mais precisamente para a minha bandeirinha. Todas as crianças achavam algo engraçado; todos os adultos achavam algo grotesco. O inspetor se aproximou e me tirou da formação, ao mesmo tempo em que falava uma série de palavrões, muitos até então inéditos para mim.

Fui levado à sala do coordenador. A esta altura, a festa estava perdida, e chorava copiosamente. O coordenador, olhando-me com desdém, não pode deixar de chamar minha atenção para o fato de que tinha feito algo que não apenas era de tremendo mau gosto, como também expôs toda a escola a um constrangimento – a um perigo, sussurrou em seguida. Depois de um longo sermão sobre o civismo, a bandeira e a vida num lugar abençoado como o Brasil, sem guerras, terremotos ou vulcões, fui liberado para voltar, não para a quadra, para casa.

Em casa, conversei com meus pais sobre o incidente, mas, por não ter entendido absolutamente nada, também não entrei em maiores detalhes. Meus pais foram chamados para uma reunião com a diretora da escola na segunda-feira. Mas, para meu consolo, disseram, o final de semana certamente colocaria as coisas nos eixos, e o assunto seria encerrado na tal reunião.

Na segunda-feira, fui à escola normalmente, e logo descobri que meus pais estavam errados: o final de semana fez muito mal a todos na escola. Todos só falavam de um padre italiano tinha se envolvido em alguma confusão no mesmo Sete de Setembro. Se já era difícil entender o que havia ocorrido na sexta-feira, tudo ficou ainda pior quando comecei a imaginar qual a relação entre o meu Sete de Setembro e o do padre.

Na saída da sala da diretora, tudo ficou claro: pintei minha bandeirinha de vermelho. Vermelho comunista, disseram o inspetor e o coordenador. Verde bandeira, disse eu, convicto como poucas vezes na vida. Enquanto ouvia a discussão, minha professora me pediu que fizesse uma série de desenhos, colorindo-os com os lápis que ela pedia.

O padre italiano, todos diziam, seria expulso do país. Um deputado do Nordeste acabara de fazer o pedido. Imaginei que o deputado poderia aproveitar e pedir que eu também saísse.

De repente, uma risada estridente da professora. Ela pegou meus desenhos, levantou-se e anunciou – Ele é daltônico! Como o meu filho! E, virando-se para mim, começou a explicar o que significava ser daltônico, e como eu deveria organizar meus lápis a partir daquele momento. Consegui ouvi-la falar, rindo, alguma coisa para o inspetor, que estava olhando para o chão, fixamente, calado. Mais tarde, ouvi-o falando sozinho, repetindo alguns dos palavrões que agora já não eram inéditos para mim.

E tudo ficava mais claro: eu não era um gênio precoce nem um dissidente político aos sete anos de idade; também não era comunista ou debochado, nem seria expulso do país que, afinal, não tinha guerras, terremotos ou vulcões.  Evidentemente, aquela foi uma tarde de grande alívio para mim. Mas, pensando bem, talvez tenha sido mesmo um ato precoce de minha parte. Afinal, nunca vesti uma camiseta do Che Guevara, omissão que, aos dezesseis anos, era considerada um desvio de personalidade. E confundir o verde das nossas matas - como aprendíamos nos feriados da independência e no dia da bandeira -  com o vermelho parece uma tendência nacional.

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Fabio Bensoussan
Nasceu no Rio de Janeiro (1973) e hoje mora em Belo Horizonte, com sua esposa e os dois filhos. É procurador da Fazenda Nacional e recentemente começou a escrever contos e a traduzir textos literários.
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