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quinta-feira, 2 de maio de 2013

NOITES DE CHUVA


NOITES DE CHUVA

 
            “Tudo que não seja visceral me entedia profundamente.” Ele costuma dizer, entre irônico e melancólico. O cinza dos olhos escanchado na paisagem. “Gostaria de comer as vísceras do dia, mas o tempo, esse corpo insuportável, já apodreceu irreversivelmente em mim.”
Ninguém o leva a sério. As idas à mercearia do povoado e os contatos com os pescadores, cada vez mais esporádicos. No bornal de pano, índigo desbotado, sempre sujo, o exemplar envelhecido d’O anticristo, do Nietzsche. Quase não mais o lê, como fazia todas as tardes, no banco da praça, antes do avanço da catarata. Jamais diz onde mora. E se tentam segui-lo, sempre o perdem de vista quando se embrenha na mata, mais rápido do que sua idade permitiria supor.

 A meninada ainda se assusta com os uivos que ecoam, em noites de chuva, pelos arredores do “castelo mal-assombrado”, como se referem à casa colonial no alto do morro, em ruínas, tomada pelo mato. Uns falam em lobisomem, outros em alma penada ou em “chupa-cabra”. Os céticos dizem que se trata de um pobre diabo louco. As velhas beatas benzem o corpo, fazem novenas. Mal escurece, recolhem-se, fecham as portas. Os homens desdenham, contando causos de almas penadas ao redor da fogueira. Cigarros de palha riscando o escuro, feito vaga-lumes.

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             Faz a barba mecanicamente, ainda perturbado com o telefonema. Lembra-se de quando a conheceu, franguinha molhada de chuva. (Riram-se muito disso, tempos depois.) Meu carro enguiçou aqui perto, na rodovia. Então vi as luzes acesas... Olhares e destinos se cruzaram. Pode passar a noite aqui. Amanhã vou lá com você, ver o que aconteceu. No dia seguinte, foram. E ela nunca mais se foi. (Mas nunca mais é modo de dizer.)
            Pouco sobre cada um. “Tudo que importa é viver o momento com a intensidade de uma tempestade, pois a vida é rio, a morte é mar.” Ela o levou a sério.
            Tempo à margem do calendário.
Conjugaram juntos os mais variados verbos. Experimentaram texturas e formas, cheiros e sabores. Todos os sentidos num só: vertigem. Laços firmados sobre a umidade dos lençóis.
Dois seres: o munduniverso.
Um dia, o inesperado. Não sei o que aconteceu. Não consigo mais... Vou embora. O silêncio não cumpre a função de pedir. Quem fica não se sente no direito: prisioneiro a cumprir sentença desconhecida. Quem vai, desbravador de horizontes, mundo afora, perdistante. Não se sabe nem notícia. 

            E agora o telefonema. Estou no aeroporto, acabei de chegar. Vou pegar um táxi e ir até aí. Tenho muito a lhe dizer... Mais de cinco anos, e ela fala como se tivessem se visto ontem.
            Reprisa imagens desgastadas. Não demora e ela aparecerá à porta, meio encabulada, como na primeira vez. Coincidência: hoje também chove. Tomara que se molhe de novo, ele fantasia. “Olá, franguinha molhada”, talvez diga. E ela talvez abaixe os olhos e sorria desconcertada. Ou talvez se atire em seus braços e o beije com desespero, quase dor. Talvez transem ali mesmo, no tapete agora molhado. Basta que conversemos assim, ele pensa, na língua insofismável dos corpos.
            O preparar-se é metódico. No gelo, o tinto chileno reservado para ocasiões especiais. As taças de cristal puro, herança de família. O provolone em cubinhos quase simétricos. Não lhe perguntará nada, já decidiu. As velas, como na primeira noite, quando faltou luz. O banho ao ritmo do assovio enferrujado. Ouvirá o que ela tem a dizer, entrecortando-lhe as frases com a língua sedenta, atrevida. Uma roupa confortável, fácil de tirar. “Perdoar?! Não há o que perdoar. Devemos ser fiéis a nós mesmos...” O perfume amadeirado de que ela gostava (ainda se lembrará?). E o arremate: “desta vez não vou deixar você ir”.
            Toca de novo o telefone. Alguém diz que encontrou o número na bolsa de uma das vítimas do acidente, se ele a conhecia.
O aparelho, agora mudo, torna-se pêndulo de relógio sem horas.

  
Edelson Nagues
Do livro Humanos (Scortecci Editora)

 

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Edelson Nagues
(nome literário de EDELSON RODRIGUES NASCIMENTO) é natural de Rondonópolis/MT e radicado em Brasília/DF. Estudou Direito e Filosofia, com pós-graduação em Língua Portuguesa. É poeta, escritor, revisor de textos e servidor público. Na década de 1980 e início da década seguinte, em seu estado de origem, atuou na área musical, como vocalista e principal letrista do Grupo Reciclagem, tendo participado de vários festivais universitários e de festivais regionais e nacionais da Caixa Econômica Federal, obtendo diversas premiações, inclusive como intérprete e letrista. Na época, funcionário da CEF, atuava como representante do então recém-criado Conjunto Cultural (hoje denominado Caixa Cultural) em Mato Grosso. Premiado e/ou selecionado para coletâneas em vários concursos literários, entre os quais se destacam: Concurso Nacional de Poesia “Adilson Reis dos Santos” (2012, Ponta Grossa/PR), XXXIII Concurso “Fellipe d’Oliveira” (2011, Santa Maria/RS), Prêmio Prefeitura de Niterói (2011), XXI Concurso Nacional de Contos “José Cândido de Carvalho” e XII FestiCampos de Poesia Falada (ambos em 2011, Campos dos Goytacazes/RJ), Concurso Novo Milênio de Literatura (Vila Velha/ES, 2010), IV Concurso Nacional de Contos do SESC-Amazonas (2010, Manaus/AM), VI Desafio dos Escritores (Brasília/DF, 2010), XL Concurso Literário “Escriba” (Piracicaba/SP, 2009). É autor dos livros Humanos (coletânea de contos premiados) e Águas de Clausura (de poesia, vencedor do X Prêmio Livraria Asabeça), ambos publicados pela Scortecci Editora. É membro correspondente da Academia Cachoeirense de Letras (de Cachoeiro de Itapemirim/ES) e mantém (ou tenta manter) o blog pessoal www.senaoescrevodoi.blogspot.com.
todo dia 03


2 comentários:

"O silêncio não cumpre a função de pedir"... Não faço mais comentários sobre sua obra, pois gosto dela toda. Mas é preciso destacar essas frases perfeitas. Como: "Gostaria de comer as vísceras do dia...".

Mto obrigad, Cinthia. Sua leitura generosa sempre enriquece meus textos. Abraço.

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