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quarta-feira, 3 de abril de 2013

PRÉ-NATAL


 
I

 
Ela chegou, à mesma hora de sempre, como vinha fazendo havia aproximadamente um ano. Sentando-se no lugar de costume, principiou a desfiar, com riqueza de detalhes, a sua última aventura. A roupa era invariavelmente preta, falso indício de sobriedade, mas seus trejeitos e o leve menear nas ancas quando andava evidenciavam a lubricidade que ela tentava ocultar. Mesmo consciente de que sua posição deveria ser a mais isenta possível, ele não conseguia se furtar a reparar nos detalhes, como o balançar da cabeça que ela fazia ao narrar alguns detalhes picantes, ou o leve tique de piscar um olho, presente nos momentos em que a narração ganhava contornos sórdidos.
 – Continue – pediu ele, secamente, embora soubesse que a cada visita mais e mais ele se ia envolvendo naquela imbricada teia narrativa. Neutro, como o ofício exigia. Frio, jamais, ainda que ela nunca tivesse percebido o mais leve resquício de curiosidade ou mesmo de interesse na atenção que ele lhe dispensava. Era parte de sua profissão, nada mais.

 
II
 
Na próxima terça-feira eu voltarei e terei muito mais a revelar. Proferindo a frase de despedida, era sempre ela quem punha fim àquelas longas sessões.
Partia, deixando no ar um aroma indescritível que despertava nele algo além de sua compreensão, tornando a cada dia mais difícil a sua isenção em relação a ela.
Na semana seguinte, ele era exposto a uma verdadeira sessão de suplícios, que se tornava mais perversa a cada vez, quando coisas inconfessáveis eram trazidas e apresentadas como uma ferida exposta, sem que ele nada pudesse fazer para impedir. Era parte de sua profissão.

 
          III

Naquela tarde, depois de ela ter saído, o som de seus passos ainda permaneceu por um tempo ecoando na cabeça daquele homem. Seu relato fora particularmente horrendo dessa vez. Ele, quase como um voyeur, revivia a cena à medida que ela narrava. Ela, resgatando antigas práticas narrativas, prendia-lhe a atenção de um modo quase mágico. Como num transe, comungavam, ambos, da experiência que ela trazia, numa bandeja. Ela, livre e impune, obtinha um perfeito ouvinte para as suas mórbidas confidências. Ele, maldito, condenado, por mecanismos éticos e legais, a ouvir sem interferir ou julgar. E, no caso dela, sem poder impedir que ela repetisse as atrocidades que narrava minuciosamente a cada nova visita.
Sem o poder de revelar a ninguém o que ouvia semana após semana, ele embarcara numa viagem sem volta, à mercê de um louco timoneiro que o torturava de forma incessante.
 – Sabe por que eu lhe conto tudo isso? – ela acariciava o lugar onde estava sentada, enquanto lançava a ele um olhar lascivo. – Porque você não pode fazer nada comigo.
Levantando-se de um salto, invadiu o espaço que os separava, e falou, num tom baixo, porém hostil: – Em você eu me vingo de todos eles.
A respiração dele tornara-se tensa, e gotículas de suor porejavam em sua testa quando ela partiu.

 
IV

No início, o que mais lhe chamara a atenção fora a barriga saliente da mulher. Apesar de ela jamais haver mencionado a gravidez, ela era evidente, o que conferia um tom ainda mais insólito a tudo o que ela narrava.
Os detalhes mórbidos, o prazer sádico com que se detinha nos pormenores, tudo tornava seu papel ali mais difícil. Inútil, até. Jamais a poderia ajudar, inclusive pelo fato de ela não manifestar qualquer resquício de remorso. Na única vez em que esboçou uma pergunta, ela simplesmente se levantou e partiu, retornando duas semanas depois. Temendo perdê-la, decidiu que não mais faria perguntas. Limitava-se a ouvi-la. – Acha que mereço alguma penitência? – brincava ela. Ele ouvia-a, sem interferir. Sabia que sua posição não lhe permitia julgar, e muito menos punir. Os únicos limites que jamais poderia transpor eram o do sigilo e o da interdição. Sim, porque aquela criatura lhe atiçava os desejos mais recônditos, os desvãos mais sombrios.
À noite, sonhava com ela e sua bela e imponente gestação a lhe ofertar o milagre da vida e as delícias da fêmea. De dia, mantinha-se sublimado, realizando-se nas picantes e sangrentas narrativas com que ela o brindava compulsivamente. Não a podia dispensar – fizera um juramento, afinalnem desfrutar de seus atrativos.
Precisavam, simbioticamente, um do outro. Parasitas mútuos. Ela, protagonista de um espetáculo atualizado a cada semana, tinha nele uma plateia atenta e fiel. Ele, inabalável em suas convicções, tinha nela seu maior termômetro. Era testado a cada vez.
As histórias se foram sofisticando. A Sherazade-psicopata contava-lhe agora minuciosamente os suplícios a que submetia os homens que dela se aproximavam.
Num dia, a curiosidade, disfarçada de preocupação, falou mais alto, e ele teve a coragem de perguntar como ela conseguia parceiros com tanta facilidade, dada a avançada gravidez. Ela riu-se, divertida, e levantou o vestido, mostrando a almofada com que simulava a gestação. A tática, segundo ela, desarmava os homens, capazes de lhe subestimar a força, julgando-a grávida. Não eram capazes, contudo, de frear seus impulsos, respeitando a vida que supostamente lhe pulsava no ventre. Ao aceitarem profanar o corpo grávido, selavam sua sentença de morte, irreversível, mesmo quando a verdade era revelada.
Provavelmente, aquilo tudo era resultado de algum estupro. Apenas algo tão aterrador seria capaz de fundir vida e morte, fazendo-a passar por uma mulher grávida para, impiedosamente, tirar a vida.
Sou uma ceifadora, dizia. A cada miserável que mato, limpo o mundo para os filhos que terei um dia. Você me acha louca, não é? – ele nada respondia, e, unindo os dedos das mãos, pensava em um modo de pôr fim àquele suplício. Era quase omissão. Não havia projeções ou sublimações que dessem conta do que se passava ali. Ela torturava-o cruelmente, inoculando nele um veneno e sabendo-o proibido de provar do antídoto.
 
V
 
MISTERIOSO CRIME INTRIGA POLÍCIA CARIOCA. Uma mulher, de aproximadamente trinta anos, foi encontrada morta na madrugada de hoje em um hotel de luxo da orla carioca. As circunstâncias da misteriosa morte ainda não foram divulgadas. A polícia já descobriu que os documentos da vítima eram falsos, além de uma barriga postiça encontrada no local, o que gerou a abertura de inquérito.
Alguns funcionários do hotel já prestaram depoimento. O recepcionista informou à polícia que ela às vezes se hospedava no local, sempre com o mesmo nome. Como ela parecia estar grávida, não levantava suspeitas por parte dos funcionários. Dizia que morava em outra cidade mas que estava sempre no Rio a trabalho.
Ela sempre me pareceu muito distinta. Chegava no meio da madrugada, mas era porque tinha reunião de manhã cedo. Como eu ia saber que ela não estava grávida? – alegou o gerente, que disse ainda temer uma repercussão negativa para o hotel, conhecido pelo alto nível de sua clientela.
O delegado responsável pela investigação tenta agora estabelecer possíveis relações entre o assassinato da mulher e alguns crimes ocorridos nos últimos meses, cuja principal suspeita era uma mulher grávida, de identidade desconhecida, de acordo com denúncias anônimas recebidas pela polícia.

 
VI
 
De manhã, tomava calmamente seu café quando se deparou nos jornais com a notícia da morte da enigmática mulher. A prostituta que fingia estar grávida para assassinar seus clientes havia sido silenciada num hotel. Aliviado, sorriu. Jamais traíra seu juramento, mas ainda assim a saga de crimes chegara ao fim.
Olhando o diploma pendurado na parede, percebeu que isso também significava o fim de suas sessões mais interessantes, do ponto de vista científico. Sua pesquisa sobre psicopatas teria de esperar. Deitou-se no divã, buscando vestígios do perfume dela. O rastro deixado por ela não se apagaria tão facilmente.
Desmarcou as consultas do dia, e trancou o consultório, não sem antes examinar a bela coleção de facas recém-adquirida. Hoje era terça-feira.
 

 

 

 

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Tatiana Alves
Tatiana Alves é poeta, contista e ensaísta. Participou de diversos concursos literários, tendo obtido vários prêmios. É colaboradora da Revista Samizdat, já tendo escrito para os sites Anjos de Prata, Cronópios, Germina Literatura e Escritoras Suicidas. É filiada à APPERJ, à Academia Cachoeirense de Letras e à AEILIJ. Possui nove livros publicados. É Doutora em Letras e leciona Língua Portuguesa e Literatura no CEFET / RJ.

todo dia 02


8 comentários:

Nossa, Tatiana!
Um conto denso, misterioso. Durante a leitura pude imaginar mil interpretações, inúmeros caminhos. E o final ainda me surpreendeu. Imaginei o tempo todo ser um prisioneiro, rs!

Muito bom.
Beijos,
Lohan

Este comentário foi removido pelo autor.

Obrigada, Lohan!
Até o último minuto não sabia se seria um padre ou um psiquiatra. Mas optei pelo último, por causa do final aberto...

Que desespero deve dar num psiquiatra de ouvir coisas horrorosas e não poder fazer nada, viu! Uma psicopata sensual. Gostei. Final que permite pensar tudo. Posso imaginar que foi ele quem a matou? Falar ele não podia... Mas e matar? Possibilidades! Amo isso de imaginar finais!

Grande conto! O final aberto coloca o leitor para trabalhar. Pra mim, foi o psiquiatra mesmo. Parabéns por mais um conto instigante, Tatiana!

Desta vez, um texto de ficção elaborado. Com sangue. De que não necessitava para prender o leitor.
Calculo que as denúncias anónimas à polícia foram feitas pelo psiquiatra, mas a coleção de facas parece-me um corpo estranho que não se liga com nenhuma pista anterior. É improvável, pelo texto, que tenha sido ele o executor. Talvez tencionasse sê-lo, em breve, talvez se vá suicidar. Jamais saberemos.
Ok!

Caramba, um padre!
Eu imaginei o tempo todo que fosse um presidiário. Imaginei as visitas, o ''não poder tocar'', aquela coisa toda... E a mulher instigando o presidiário, a cada visita; ele se reconhecendo nela, ao mesmo tempo, e tudo mais... Show!

E quem garante que ele não enlouqueceu e não tomou o lugar dela, para preencher as terças, agora sem ela?
Obrigada pela leitura e pelos comentários.

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