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terça-feira, 6 de outubro de 2009

Imagem de Barro

por Wellington Souza


Nossas temperaturas estão a um bom tempo equilibradas e altas, o calor incomoda ainda mais quando se divide cama de solteiro. Estou de costas e me chego ainda mais em seu corpo, quero mais calor. Paradoxos. E, para sentir a respiração leve do seu metabolismo desacelerado, enrolo meus cabelos e coloco-os de lado, pousando a cabeça em cima. Então vou afastando-a até sentir que o seu nariz afogou-se em mim, que meu perfume impregna o escritório, a academia, o avião ou qualquer lugar onde esteja. Que acorde e diga que sonhou comigo.

Não sei bem se o amo, se esse querer-bem é o objeto cantado tantas vezes. Mas me protege e me dá orgasmos (no plural mesmo). Talvez me sinta acomodada, numa “zona de conforto”, como diriam os profissionais de recursos humanos. Só não sinto nosso relacionamento seguro, acho que relacionamentos não são seguros, não são isentos das incertezas quanto ao futuro – somos homens-econômicos: pensamos em termos de risco-retorno. Dado o risco assumido de parar de sair com outros caras - mas não por respeito à virilidade, sim à feminilidade – o retorno está condizente com o encontrado no mercado.

Tento ficar quietinha, respirar o mais suave possível para não ser descoberta em vigília.

Pena não conseguir dormir em camas estranhas à minha. Nunca me acostumei a outras e não descubro o porquê. Não me esforço muito também, talvez Deus tenha me feito assim, intuitivo que é; talvez tenha em meu subconsciente algum bloqueio que me impeça de suspender o alerta e a atividade sensorial em habitats excêntricos. Disseram-me que pode ser pela mudança do ambiente ao redor. Nunca fui boa investigadora, deixo as respostas quietas após poucas tentativas frustradas ou incertas.

Desisto e levanto. Calço uns chinelos que ficam grandes e vou arrastando-os até a escrivaninha onde acredito estar a minha calcinha. Visto-a. Apanho uma lapiseira e uma folha A4 na impressora, escolho um livro de capa dura na prateleira e vou sentar-me na varanda. Na cidade todos dormem – ou fingem – tanto faz. Não há o que escrever. O livro é de Administração de Marketing.

Não sei também se ele me ama, nunca ouvi nada parecido, nem na cama. Mas isso pouco importa de tão importante que é. Melhor não pensar. Nem nos conhecemos. O pior não é nunca ter escutado palavras como paixão ou amor, o pior é não fazer parte dos planos. A questão não é nem não fazer parte dos planos, também não quero me casar, assim; acho que é não compartilhar os planos. Não vou me fazer de culpada por não inflamá-lo – não posso, em consideração a mim mesma – mas gostaria de saber dos seus anseios, suas aspirações. Dos medos já seria demasiado: homens são herméticos e nem eles os conhecem. Talvez este seja um subterfúgio para construírem e irem além. Olhos fechados e passo firme. Difícil.

Vem a inspiração. Checo se o grafite está OK. “Há um cofre e não há o segredo./ O cofre está fechado./Talvez os séculos com suas armas corrosivas o abra/ talvez.”. Está esfriando e logo estará na hora de acordar.

Tivesse agora, fumaria meu primeiro cigarro. Ninguém sorri enquanto fuma, me disseram. Não quero sorrir. Acho que só deveríamos sorrir ante a morte, pois ai é certo que não haverá mais futuro para se chegar. É um erro sorrir enquanto se luta. Não tenho nada, porque o que conquisto jogo fora para ir atrás de mais, senão morro. E o cigarro me parece uma parada técnica. Meu pai fumava e quando discutia com a minha mãe sempre despistava para um cigarro na varanda. Quando voltava, estava mais sereno e a mulher logo acalmava também. Na verdade queria pensar assim e fumar, mas acho as duas coisas muito másculas. Queria ser uma mulher dedicada e fiel, mas também não ser essa. Tentarei fumar, mas só em festas para os outros verem que eu sou forte também.

Já estamos enjoando um do outro, acho. O nosso elo mais forte é na cama, talvez o único. Antes nos víamos quase todos os dias, nem que fosse apenas para dar uns beijinhos no cinema ou em mesas de fundo no bar. Agora fodemos nos fins de semana e ele nem me liga todos os dias. Está decaindo ao sexo banal, ou casual, como dizem. Necessidades fisiológicas de ambos supridas, cada um em sua solidão. Acho que já posso começar a procurar outro ou fazê-lo acreditar nisto.

“Gostaria que, ao tocá-lo/ ele se abrisse/ (como se a senha estivesse em algum buraco de mim)/ só para desmistificá-lo/ ver que não há nada insólito/ que induz à idolatria./Igual/ mas não reciclável.”.

Há tempos não via o dia germinar; o negro está ficando azul-marinho. Está também cada vez mais frio. Entro, fecho a porta de vidro e me sento próxima à varanda com a persiana aberta, numa poltrona de antiquário. Nem temos mais muito assunto. Filmes: só vemos os recreativos de Hollywood que não dão muito o que comentar. Músicas: temos gostos totalmente opostos, não somos ecléticos e tampouco queremos dar o braço a torcer na questão. Conversas banais sobre cotidiano e vida alheia logo me deixam enfadada. Queria que ele me explicasse suas empresas, motores de automóveis, futebol que seja. Queria que me aplicasse testes para ver se sirvo para sempre.

Agora está azul-turquesa e os pássaros começam a lavrar o café-da-manhã. Qual será a diferença entre ave e pássaro? Logo ele acordará. Deixa a persiana aberta, gosta que a luz do dia seja seu despertador natural. Criativo.

“//O que preciso é que esteja ao meu alcance/ como um brilhante/ para eu ditar a hora de usá-lo/ e de negá-lo.” Acredito que terminei este poema.

Já está ficando azul-azul. As nuvens, de invisíveis, foram pintadas dum laranja que fosforesceu, mas já estão descorando. Acho que vou me deitar. Destaco a parte escrita da folha, amasso a não-escrita e tento fazer uma “cesta” na lata de lixo, mas erro. Levanto e vou arrastando o chinelo em direção da cama. No caminho coloco o poema na bolsa e displicentemente o livro e a lapiseira na escrivaninha. Admiro, ainda em pé, suas pálpebras trêmulas: certamente, em sonho, me perdeu e isso o aflige.

Sento-me na cama devagar e deito tentando imitar uma pluma. Ele dorme de lado e um pouco encolhido, tento encaixar meu corpo ao seu. Conchinha. Novamente enrolo meu cabelo e faço dele travesseiro. Deixo a região da clavícula e cervical nua, sei que ao acordar ele irá atacá-la como um anti-vampiro que dá vida ao despertar sensações diversas nas vítimas.

Dissolveram a aquarela azul e agora está aguado e límpido. Os pássaros já quietaram e as nuvens estão brancas. Acho que as coisas voltaram ao normal após a turbulência que o rompimento de madrugada causa. Inclusive eu.

Roço minha bunda em seu púbis em intervalos desritmados, se ele acordar um pouco mais cedo e se deparar com meu corpo livre, quererá. Não tenho porque terminar esse relacionamento, afinal de contas temos o que precisamos um do outro. Não sei se me portaria bem como cúmplice, talvez não seja este o porquê de estarmos. Estamos mais para um ser válvula de escape do outro, mas não no sentido portuário (de porto seguro), tange ao circense: algo sem itinerário ou contratos. A tradução literal de boyfriend e girlfriend talvez seja a que melhor nos defina.

Ele está acordando, melhor parar agora o registro mental de minhas ações. Os verbos passarão a ser conjugados todos em voz passiva e quero manter minha postura de mulher moderna. Acho. Toma minha barriga com o braço e traz para si. Ataca meu pescoço e vou esquivando-me para frente ante suas investidas. Mas neste movimento nossas partes inferiores se friccionam e ele já se faz sentir.

Ocorreu-me o título: ídolo de barro. Espero que me faça esquecê-lo.

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Ídolo de Barro

Há um cofre e não há o segredo.
O cofre está fechado.
Talvez os séculos com suas armas corrosivas o abra,
talvez.
Gostaria que, ao tocá-lo
ele se abrisse
(como se a senha estivesse em algum buraco de mim)
só para desmistificá-lo:
ver que não há nada insólito
que induz à idolatria.
Igual
mas não reciclável.

O que preciso é que esteja ao meu alcance
como um brilhante
para ditar a hora de usá-lo
e de negá-lo.



Publicado originalmente no blog do autor: http://hiper-link.blogspot.com

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