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segunda-feira, 22 de julho de 2024

Cuidado Com O Que Se Deseja

 


Redondinha, falavam de Kauana, redonda em seus traços. Assim falavam dela na infância e na adolescência, e falavam de como apesar de pouco se alimentar Kauana não emagrecia, e as mais ferinas ou bondosas críticas atribuíam a obesidade à sua aversão às atividades físicas – com o senão das práticas na escola, onde corria com a deselegância dos roedores ou dos suínos e culpava o fracasso do exercitar à congênita e malfadada conformação óssea.

Quero ser bonita, escreveu ela com esmalte vermelho em uma das folhas da agenda anos mais tarde, Quero ser bonita e gostosa, escreveu, e não obstante a resolução revelasse desânimo, ou mera e casual distração, forças e circunstâncias vinculadas à lua, à noite e às constelações, também à caligrafia, convergiram e atuaram em favor de Kauana – e porventura sua débil intenção representasse a substância essencial na mágica e involuntária cerimônia.

Pois na manhã seguinte convertera-se.

Entendeu-se bela e atraente diante do espelho, e no almoço restringiu-se aos alimentos de menor alegria e caloria e à tarde matriculou-se em um centro de treinamento. MONSTER FITNESS intitulava-se o local, e dentro de suas ressudadas muralhas gladiadores e gladiadoras exercitavam-se ao som de melodias ensurdecedoras, ou erguiam barras e anilhas, ou bigornas e âncoras de navio, ou transitavam de estação de tortura à estação de tortura e ostentavam músculos cuja surreal definição em muito excedia a de suas ideias e propósitos. Era sexta-feira, e no fim de semana Kauana lamuriar-se-ia, com brandura e serenidade, de dores e rigores, câimbras mil, mas não consumiria as horas em desalento ou, sequer, devoraria doces e salgados, e ao chamuscar-se no sol ao meio-dia de domingo contemplou-se como sombra e nas curvas da silhueta anteviu um futuro no qual ela vangloriar-se-ia do abdômen e seus sulcos, ou dos vastos e retos gomos da perna, um futuro no qual Kauana exibiria o torso de ogros e gorilas – tempo este consumado em cinco anos de labor muscular com a devoção dos crentes e beatos.

Escultural, falavam de sua figura, escultural e monumental, e falavam da metamorfose como acidente ou milagre, ignorantes de suplícios e desditosas diligências, de suores amarelos e incessantes e de fermentadas ventosidades. Originara-se da fome, diria ela ao arrancar calos das palmas das mãos. Vício, ou fome, transmutado em ambição e desejo. Esbelta e curvilínea Kauana desfilou os anos até, aos trinta, cansar-se de tudo, de todo exercitar e de todo abnegar, e com assombro acusou ela a monotonia dos exercícios aeróbicos ou o condicionamento de sua figura às expectativas da natureza. Malgrado reincidisse no ócio e na gula, conservou-se bela como se a aparência penosamente conquistada representasse um direito adquirido e incontestável, como se os excessivos benefícios do esforço e da dedicação, ou o esforço e a dedicação em si, granjeassem a ela um privilégio de eterno, e oculto, usufruto.

E assim Kauana cultuou e devorou a vida.

Um segundo milagre, falaram acerca da beleza que resistia às circunstâncias, um segundo milagre ou acidente, e a própria Kauana julgava-se sortuda e afortunada, e outros anos desfilou com alegria e elegância até a fatídica noite quando, prestes a dormir, casada e mãe, enfurecer-se ao contemplar o seu reflexo na penteadeira: irretocável e sublime, dissera o marido ao percebê-la altiva diante do espelho, e como se ele a provocasse Kauana arremessou no assoalho os esmaltes de cores estrangeiras e as escovas de cabo perolado, arrebentou os frascos de perfume e derramou a viscosa exuberância dos cremes – e enfim deflagrou-se não o constrangimento dos anos, ou tampouco o rigor característico aos espíritos críticos, mas a obrigação ao belo, obrigação cujo silencioso oprimir lhe amargava o cotidiano desde as primeiras séries na academia, desde o seu inicial desejo de perfeição. Considerou-se ela, a partir do surto, amaldiçoada e proscrita, afinal a beleza autoimposta, quando em detrimento de virtudes superiores, exige e exige muito, e tal corolário só os belos e belas entendem, não competindo à linguagem esclarecer, ou se aproximar, de certos fenômenos.

Os meses seguintes Kauana visitou renomados especialistas e psiquiatras e chafurdou em remédios, e não obstante evitasse pentear os cabelos para ostentar a mítica feiura dos loucos manteve-se linda, irretocável e sublime, e no ano posterior ao surto reviu a alegria e compostura de seus melhores dias. Porém era a felicidade fingimento, pois Kauana ansiava, a despeito do marido e dos filhos, apressar o fim, e à possibilidade ela viciou-se e somente abandonou a ideia de suicídio após cogitar a hipótese de enfear-se e horrendar-se, agradando-lhe sobretudo o desafio de, a exemplo do passado, superar uma limitação estética.

Sabia Kauana, entretanto, de seu fado e sina, de como forças ininteligíveis atuavam a favor de sua beleza e formosura, e por semanas dedicou-se ela a analisar conjecturas para enfim concluir que ou espargia ácido sobre o rosto ou ao rosto ateava fogo.

Escolheu a segunda opção.

Com o enfado característico aos condenados, esperou estar a sós em casa e então despejou álcool sobre o rosto. Nas trevas do banheiro, entre a ocasional iluminação dos automóveis na rua, acendeu um fósforo.

Morreu.

Na cerimônia fúnebre o marido contrariou o conselho de familiares e amigos íntimos e arrancou a cobertura do ataúde. Velou-a de caixão aberto. Terá ela a sua desforra, disse ele, e entre crisântemos brancos a face de Kauana assomava feito embarcação decrépita e carcomida, dir-se-ia um incendiado barco fantasma navegando em mares de espuma. Conquanto o horror da cena e a implausibilidade da situação, como se hipnotizados os presentes contemplavam o cadáver e analisavam seus traços humanos apesar da pele contorcida e purulenta. Entre as bochechas, distinguia-se a intocável perfeição dos dentes.

Meu deus, admirou-se um dos presentes. Ela continua linda.


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Erik K. Weber
Gaúcho.






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