Redondinha,
falavam de Kauana, redonda em seus traços. Assim falavam dela na infância e na adolescência,
e falavam de como apesar de pouco se alimentar Kauana não emagrecia, e as mais
ferinas ou bondosas críticas atribuíam a obesidade à sua aversão às atividades
físicas – com o senão das práticas na escola, onde corria com a deselegância
dos roedores ou dos suínos e culpava o fracasso do exercitar à congênita e
malfadada conformação óssea.
Quero ser
bonita, escreveu ela com esmalte vermelho em uma das folhas da agenda anos mais
tarde, Quero ser bonita e gostosa, escreveu, e não obstante a resolução revelasse
desânimo, ou mera e casual distração, forças e circunstâncias vinculadas à lua,
à noite e às constelações, também à caligrafia, convergiram e atuaram em favor
de Kauana – e porventura sua débil intenção representasse a substância essencial
na mágica e involuntária cerimônia.
Pois na
manhã seguinte convertera-se.
Entendeu-se
bela e atraente diante do espelho, e no almoço restringiu-se aos alimentos de menor
alegria e caloria e à tarde matriculou-se em um centro de treinamento. MONSTER
FITNESS intitulava-se o local, e dentro de suas ressudadas muralhas gladiadores
e gladiadoras exercitavam-se ao som de melodias ensurdecedoras, ou erguiam
barras e anilhas, ou bigornas e âncoras de navio, ou transitavam de estação de
tortura à estação de tortura e ostentavam músculos cuja surreal definição em
muito excedia a de suas ideias e propósitos. Era sexta-feira, e no fim de
semana Kauana lamuriar-se-ia, com brandura e serenidade, de dores e rigores,
câimbras mil, mas não consumiria as horas em desalento ou, sequer, devoraria
doces e salgados, e ao chamuscar-se no sol ao meio-dia de domingo contemplou-se
como sombra e nas curvas da silhueta anteviu um futuro no qual ela vangloriar-se-ia
do abdômen e seus sulcos, ou dos vastos e retos gomos da perna, um futuro no
qual Kauana exibiria o torso de ogros e gorilas – tempo este consumado em cinco
anos de labor muscular com a devoção dos crentes e beatos.
Escultural,
falavam de sua figura, escultural e monumental, e falavam da metamorfose como
acidente ou milagre, ignorantes de suplícios e desditosas diligências, de
suores amarelos e incessantes e de fermentadas ventosidades. Originara-se da
fome, diria ela ao arrancar calos das palmas das mãos. Vício, ou fome,
transmutado em ambição e desejo. Esbelta e curvilínea Kauana desfilou os anos
até, aos trinta, cansar-se de tudo, de todo exercitar e de todo abnegar, e com
assombro acusou ela a monotonia dos exercícios aeróbicos ou o condicionamento
de sua figura às expectativas da natureza. Malgrado reincidisse no ócio e na
gula, conservou-se bela como se a aparência penosamente conquistada
representasse um direito adquirido e incontestável, como se os excessivos
benefícios do esforço e da dedicação, ou o esforço e a dedicação em si,
granjeassem a ela um privilégio de eterno, e oculto, usufruto.
E assim
Kauana cultuou e devorou a vida.
Um segundo
milagre, falaram acerca da beleza que resistia às circunstâncias, um segundo
milagre ou acidente, e a própria Kauana julgava-se sortuda e afortunada, e
outros anos desfilou com alegria e elegância até a fatídica noite quando,
prestes a dormir, casada e mãe, enfurecer-se ao contemplar o seu reflexo na
penteadeira: irretocável e sublime, dissera o marido ao percebê-la altiva
diante do espelho, e como se ele a provocasse Kauana arremessou no assoalho os
esmaltes de cores estrangeiras e as escovas de cabo perolado, arrebentou os
frascos de perfume e derramou a viscosa exuberância dos cremes – e enfim
deflagrou-se não o constrangimento dos anos, ou tampouco o rigor característico
aos espíritos críticos, mas a obrigação ao belo, obrigação cujo silencioso
oprimir lhe amargava o cotidiano desde as primeiras séries na academia, desde o
seu inicial desejo de perfeição. Considerou-se ela, a partir do surto,
amaldiçoada e proscrita, afinal a beleza autoimposta, quando em detrimento de
virtudes superiores, exige e exige muito, e tal corolário só os belos e belas
entendem, não competindo à linguagem esclarecer, ou se aproximar, de certos
fenômenos.
Os meses
seguintes Kauana visitou renomados especialistas e psiquiatras e chafurdou em
remédios, e não obstante evitasse pentear os cabelos para ostentar a mítica
feiura dos loucos manteve-se linda, irretocável e sublime, e no ano posterior
ao surto reviu a alegria e compostura de seus melhores dias. Porém era a
felicidade fingimento, pois Kauana ansiava, a despeito do marido e dos filhos, apressar
o fim, e à possibilidade ela viciou-se e somente abandonou a ideia de suicídio
após cogitar a hipótese de enfear-se e horrendar-se, agradando-lhe sobretudo o
desafio de, a exemplo do passado, superar uma limitação estética.
Sabia
Kauana, entretanto, de seu fado e sina, de como forças ininteligíveis atuavam a
favor de sua beleza e formosura, e por semanas dedicou-se ela a analisar
conjecturas para enfim concluir que ou espargia ácido sobre o rosto ou ao rosto
ateava fogo.
Escolheu a
segunda opção.
Com o
enfado característico aos condenados, esperou estar a sós em casa e então
despejou álcool sobre o rosto. Nas trevas do banheiro, entre a ocasional
iluminação dos automóveis na rua, acendeu um fósforo.
Morreu.
Na cerimônia
fúnebre o marido contrariou o conselho de familiares e amigos íntimos e
arrancou a cobertura do ataúde. Velou-a de caixão aberto. Terá ela a sua
desforra, disse ele, e entre crisântemos brancos a face de Kauana assomava
feito embarcação decrépita e carcomida, dir-se-ia um incendiado barco fantasma
navegando em mares de espuma. Conquanto o horror da cena e a implausibilidade
da situação, como se hipnotizados os presentes contemplavam o cadáver e
analisavam seus traços humanos apesar da pele contorcida e purulenta. Entre as
bochechas, distinguia-se a intocável perfeição dos dentes.
Meu deus,
admirou-se um dos presentes. Ela continua linda.
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