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sexta-feira, 19 de julho de 2024

Abandono

 


Com a chave da porta externa, adentrei a casa. Já havia limpado boa parte das paredes, mas ainda permaneciam mofadas. Nenhuma luz na sala e nos outros cômodos, esse era o motivo. “Titia, deixe as janelas abertas para arejar, pelo amor de Deus!”, eu a suplicava. Uma vaga esperança me levava a encontrar tia Jacira viva. Comprometi-me a visitá-la uma vez por semana, num dos dias em que fico na cidade – nos outros, viajo a trabalho para o interior. Não tenho condições de pagar uma pessoa para cuidar dela, meus parcos rendimentos só servem para cobrir os gastos de casa, que são muitos, visto que minha mulher não trabalha e tenho dois filhos pequenos. Jacira é minha tia afim, foi casada com tio Gilberto, irmão de mamãe. Quando ele morreu, ela se afundou num estado grave de depressão, ou algo do tipo. Com o peso da idade, é ainda mais difícil demovê-la dessa situação. Pelo que percebi, ela não pode contar com mais ninguém no mundo. Os sobrinhos não a procuram. Na última vez em que falei com Alberto, um de seus sobrinhos, ele me disse que tia Jacira merecia estar onde está, porque não teria sido uma pessoa boa; fez caso da casa que os irmãos receberam de herança, fato ocorrido há muitíssimos anos. Ou seja, como ela, os familiares tinham o gene aguçado do rancor. Meus tios não tiveram filhos – também não fizeram muito esforço para isso –, e não sei qual foi a razão, se esterilidade ou desinteresse. Fato é que estou só nessa peleja. Janaina, minha esposa, até tenta ajudar no que pode, mas não temos com quem deixar os nossos filhos, que demandam muito dela. Como sempre, com medo, entro na casinha. Ela é infestada de gatos, que, pelo menos, não deixam roedores passar, para comer os restos de comida que ficam espalhados pelo chão. No fatídico dia, bati na porta do quarto, e, demorando, tive de abri-la. Tia Jacira estava emborcada na cama, como se num sono profundo. Peguei-a nos braços e levei-a para o hospital mais próximo. Percebi que ainda estava viva, embora frágil como um passarinho. O médico que a atendeu sugeriu que chamaria a polícia por maus tratos. Ela tinha manchas roxas pelo corpo. Tive de me explicar, não fiz nada daquilo. “Doutor, sou o único ente que cuida dela. Foi abandonada pela família… Faço o que posso. Pelo menos uma vez por semana vou visitá-la, e hoje, infelizmente, a encontrei assim”. Lembrei-me que seu quarto estava revirado. Deve ter sofrido uma tentativa de assalto, e, como os assaltantes não encontraram nada, deram uma surra na velhinha. Tia Jacira passou uma semana na UTI. Recuperou-se bem, apesar das dores pelo corpo. Não havia ossos quebrados, só luxações. Quando recebeu alta, levei-a para casa. Mas não tenho condições de cuidar dela. Falei com a minha esposa, e vamos deixá-la numa casa de repouso para idosos. Na casa dela darei uma limpeza, para pôr para alugar. A renda da aposentaria e do aluguel cobrirão as suas despesas. E assim a vida seguirá o seu curso, como tem de ser, da forma que pensamos ser melhor para ela.


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