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sábado, 19 de agosto de 2023

Carrossel

 



Não sei se você já fez este exercício: há dez anos eu nunca imaginaria que faria isso ou aquilo. É tão interessante e bobo pensar nos caminhos que a vida toma… Em 2012, recém-saído da faculdade – formei-me em 2010 –, deveria procurar uma carreira promissora prestando concurso, essa era a regra. Um professor perguntou, numa aula do último semestre, quem faria concurso quando se formasse. A resposta deixou encabulado os que queriam advogar; foi um massivo noventa e sete por cento da sala. Entrei nesse bolo concurseiro; levantei a mão, sem ao menos acreditar no que fazia. Era o desejo do meu pai. Ele faleceu em 2011. Passado o vendaval do abalo da morte do meu guru, enfiei a cara nos livros. E uma forte disposição me puxava para longe do embate… Não queria advogar; advogar = embate. Mas com a morte, teria de buscar um emprego. Era isso: estudar para concurso e trabalhar na área. Seguiria; contudo, sem crer que essa fórmula seria possível. E não era mesmo. Foi o caos embarcar num escritório que se quedava a menos de um quilômetro do principal fórum da cidade. Dos seis meses em que aí fiquei, não tive oportunidade de pegar seriamente num livro. A minha chefe me cobrava produtividade – enquanto ela passeava pelos shoppings e eventos. “Produtividade” quer dizer uma média de dez petições por semana – mais de uma por dia –; sem contar que tinha de despachar no bendito fórum apelidado de “O grande elefante branco”. Ou seja, chegava todos os dias estafado em casa. Minha mãezinha perguntava se eu estava bem, e eu achava, inocente, que era isso: ralar como uma mula. O trabalho não tinha nada de intelectual. Devia pegar os casos parecidos e preparar peças “Frankenstein”. Refletia se ser profissional se resumia a insistir, chatear e montar grotescos instrumentos petitórios. A pressão só aumentava. Levava casos e mais casos para trabalhar nos fins de semana, quando devia ser o meu descanso. Não suportando mais, com uma pilha de processos na mesa, e vendo a minha chefe desfilar nos salões da high society alencarina, pedi para sair. Recebi uma gratificação mixuruca. “E se dê por satisfeito”, refleti, derrotado. Não havia carteira assinada. Era tudo uma grande sociedade, da qual eu era um associado, parceiro, chapa ou amigão. Sim, devia estudar sério para concurso, foi o que veio à mente. Recuperar o rumo. A experiência em escritório foi traumática. Se partisse para outro, poderia ser atormentado pela sombra da loucura. Minha mãe tinha medo de que eu adoecesse como o meu pai. Ele era bipolar. Teve várias crises. Um médico, amigo da família, declarava que era algo genético. “Rafael, você pode sofrer do mesmo mal. Tome cuidado com o excesso”. Isso martelava a minha cabeça. Eu poderia ser agravado pela doença pelo simples fato de pensar nela. Que horror. Estudava, dia e noite, com parcimônia. Mãezinha pedia cautela, que não era sangria desatada: “Meu amor, temos uma renda razoável. Não pense que a falta de emprego agora é o fim. Já, já, você passa no seu concurso”. Os meses se acumulavam, a insegurança de saber o que de fato queria. O Direito tornava-se cada vez mais insípido, principalmente quando teimei em trabalhar numa empresa de locação de bens. Confere contrato. Lança ficha. Entra na justiça para cobrar crédito. Sucumbi à “necessidade” de trabalhar – ou à necessidade de me sentir útil –, enquanto esperava ser chamado num concurso para procurador de uma prefeitura do interior – eu estava no cadastro de reserva. Aquilo era monótono e chato. O chefe sabia mais que todo mundo, inclusive sobre Direito, sendo formado em Administração. Eu não tinha, nem nunca tive, aptidão para ser babão. Juscelino, um colega advogado, logo se tornou meu chefe – tendo entrado na empresa comigo. Era o homem de confiança do chefão porque era “atencioso”, sabia oferecer, na hora certa, cafezinhos e quitutes ao mandachuva. Só a ele. E eu não via a hora de ser chamado no concurso, ou de virar a cabeça e viver da minha arte. No tempo livre, escrevia, num blog, crônicas sobre sociedade e política. Era a minha válvula de escape. Virou uma precisão a escrita. Depois de dois anos, enfim fui chamado para ocupar meu posto. Antes disso, dei uma banana ao chefinho que queria ser gente, humilhando e se gabando de suas míseras conquistas. Hoje, depois de dez anos de formado, agradeço a Deus a trilha que ele montou para mim. Sou concursado pela segunda vez. Preferi trabalhar como analista judiciário da Justiça Federal. A escrita, para mim, é um deleite. Já estou no sétimo livro de poesias. Meus colegas me chamam de “pimpão”, carinhosamente, porque veem em mim a doçura e a energia – e não sou tão bom assim. Mamãe insiste que eu me case com Silvana. Não temos pressa, embora esteja nos planos. Somos novos. E ainda, inocente e esperançoso, faço o exercício de saber como será daqui a dez anos.


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