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terça-feira, 8 de agosto de 2023

A Chamada

 


O som do telefone fixo sobressaltou Artur. Há meses, ou até anos, que não o usava, mantinha-o até mais por inércia do que por necessidade e também porque estava incluído no seu contrato de Internet.

Com a demora em chegar à entrada do apartamento, onde o mantinha a um canto, receou que quem estivesse do outro lado acabasse por desistir e desligar. Mas não, devia ser realmente importante porque teve tempo mais do que suficiente mesmo com a lentidão que a bengala que usava desde o seu acidente há dois meses lhe causava.

E foi com alguma excitação contida que levantou o telefone da sua base e pronunciou o seu usual “Alô?” Após um silêncio um tanto prolongado, que o fez quase desligar, ouviu, finalmente dizer:

“Quem fala?”

“Com quem quer falar?

“Com o Zezinho, claro.”

“Desculpe, aqui não vive ninguém com esse nome.”

E irritado por se ter deslocado em vão, Jorge desligou abruptamente, dando-lhe uma certa satisfação o ruído seco que o aparelho fez ao ser encaixado no seu lugar, algo que sempre lhe fizera falta com os telemóveis, apesar de não chegar aos calcanhares dos telefone de outrora.

Mas de volta ao seu escritório / salinha deu por si a pensar naquela chamada. Seria realmente um número errado? É que na realidade o seu nome completo era José Artur... Mas na adolescência exigira que lhe começassem a chamar só Artur, achava José, ou pior ainda, Zé, demasiado vulgar e popularucho.

A família não respeitara essa mudança, mas com a ida para a universidade e a entrada na vida adulta passara a ser muito simplesmente Artur ou o Sr. Silva. Esquecera, até, de certo modo que nem sempre fora assim. Bom, até à maldita chamada...

Não reconhecera a voz, o que até nem era de admirar, nunca fora muito bom a fazê-lo. Irritava-se, até, solenemente com quem achava que bastava dizer “olá” e pronto, ele teria logo de saber quem era. Felizmente o telemóvel viera resolver a maior parte destes problemas, com o seu identificador de chamadas.

Mas... Zezinho? Mesmo em miúdo poucos lhe chamavam assim, só a família e alguns colegas de escola de quem era amigo na época. E a verdade é que, por motivos que nem ele próprio sabia, fizera questão de manter o mesmo número desde que passara a ter o seu próprio telefone.

Teria sido alguém do seu passado? As hipóteses eram realmente muito reduzidas.

Da família próxima, restava-lhe apenas o pai e uma das irmãs. Mas era duvidoso que fosse um deles, uma vez que não se falavam há anos.

Cortara relações com o pai quando este, tendo ficado subitamente desempregado por ter provocado um acidente na fábrica onde trabalhava, deixara de lhe poder pagar os estudos, ou antes, todas as despesas da sua vida de estudante. Culpava-o por ter sido forçado a arranjar um emprego para custear o quarto, alimentação, transportes e tudo o mais, cortando-lhe, assim, todo o tempo livre para qualquer tipo de diversão.

Mesmo quando veio a saber que havia outras razões para o acidente, de tal modo que o pai recebera, até, uma indemnização pelo despedimento sem justa causa, tinha passado demasiado tempo e não saberia como retomar uma relação que, diga-se de passagem, nunca fora grande coisa.

Quanto à irmã, bom, sendo cinco anos mais nova, pouco convivera a sério com ela até partir para a universidade. Na altura achava-a até um pouco chatinha, sempre a querer estar de volta dele quando ele tinha bem mais que fazer do que aturar uma criancinha.

Aquando do seu casamento tinha havido uma tentativa de aproximação, mas a realidade é que viviam em mundos muito diferentes. Ela casara ainda antes de acabar o liceu com um colega que se tornara taxista e ele tentava singrar no mundo empresarial. Acabaram por se limitar à troca de emails de Natal e de parabéns, mas também esses foram esmorecendo e há já uns dois ou três anos que nada sabia dela.

Era, pois, muito pouco provável que o “Zezinho” viesse de um deles.

Restavam, pois, os amigos de infância. Bom, amigos, é como quem diz. Tinham-se habituado a conviver desde miúdos por serem os únicos da mesma idade naquela rua e mantiveram o seu relacionamento durante a primária e o liceu apenas porque tinham sempre sido postos na mesma turma. Não sabia bem como fora para o Manuel e para o Jorge, mas, no que lhe dizia respeito, fizera-o muito simplesmente porque achara que criar novas amizades daria muito trabalho e, como tencionava partir daquela terriola mal concluísse o liceu, o mais provável era não valer realmente a pena.

E assim fora. Inicialmente, ainda se viam quando ia a casa nas férias. Os amigos não tinham prosseguido os estudos, preferindo algo mais prático e que lhes rendesse um salário mais rapidamente. E descobriram rapidamente que pouco tinham agora em comum. As saídas em grupo passaram a ser quase uma obrigação, bom, no seu caso sempre era um escape à vida familiar, que acabara quando cortara relações com o pai, nunca mais tendo voltado à terra.

Mas, enfim, havia sempre a hipótese muito remota de um deles ter tentado ligar-lhe, sabe-se lá porquê, arriscando usar o seu antigo número. Mas por mais voltas que desse à cabeça, não conseguia imaginar nenhum cenário em que isso acontecesse.

Ainda pensou em verificar o número de onde partira a chamada, mas o seu telefone fixo era mesmo muito antigo e não tinha essas modernices.

Para quem o conhecesse profissionalmente, esta sua obsessão com o que fora, quase de certeza, um número errado poderia parecer estranha. Mas como a sua ex-mulher nunca se cansara de lhe dizer, a sua personalidade tinha uma forte componente cismática, como se costumava dizer, e odiava ver-se perante questões que não conseguia resolver.

E aqui estava claramente uma delas. Maldita chamada!

Estava decidido, iria imediatamente eliminar do seu nome o telefone fixo e o respetivo número. Mas... e se não tivesse sido engano e a pessoa tentasse novamente?

Luísa Lopes

Imagem criada com QuickWrite

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