Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

segunda-feira, 10 de julho de 2023

Dimensões no espelho

 


Já era tarde da noite, ao longe os clarões sinalizavam a tempestade que se aproximava. Eu tinha apenas uma hora de viagem, resolvi seguir em frente. Não seria a primeira vez que dirigiria com tempo ruim. Eu estava ansioso por chegar em casa.

A chuva chegou e foi se avolumando. O tráfego era intenso e os faróis ofuscavam a minha visão no vidro molhado e oleoso. Pensei em parar, não havia lugar seguro, continuei dirigindo. Uma árvore caída mostrava a força dos ventos e o perigo que poderia estar me esperando na próxima curva.

De repente um grande clarão tomou conta do espaço em minha frente, seguido de um som estridente e assustador. Me obriguei a fechar os olhos e fiquei contente por não ter encontrado nada à minha frente. Foi uma sensação boa, nos primeiros segundos, pois a tempestade passou repentinamente, o vento cessou, apenas galhos e folhas cobriam a pista. Nem água havia mais. Tudo estava muito silencioso e a rodovia, malconservada, parecia mais nítida do que nunca para uma noite encoberta pelas nuvens.

Tentei sintonizar o rádio, havia um apagão nas emissoras locais, nem chiado eu conseguia sintonizar. Depois, me dei conta que eu já havia andado por pelo menos dois quilômetros e não encontrará nenhum veículo no sentido contrário. Reduzi a velocidade, ninguém me alcançava também. Só poderia ter sido um acidente, pensei.

A estrada começou a ganhar contornos diferentes. Ao longe surgiram algumas luzes. Talvez uma pequena cidade. Voltei a tentar a sintonia de alguma emissora no rádio. Ao tocar o botão, as luzes do carro se apagaram. Em ato reflexo pisei no freio. O carro invadiu a pista contrária, no exato momento em que surgia um outro carro na outra mão de direção. As luzes do meu carro voltaram e o motorista conseguiu perceber a tempo e evitar a colisão.

Joguei o carro para o acostamento e fiquei paralisado por algum tempo. Minhas mãos estavam fixas no volante. Olhei com mais atenção para elas, não pareciam minhas mãos. Olhando com mais cuidado, o painel do carro também não era o mesmo. Voltei meus olhos para o espelho retrovisor e não me reconheci no reflexo.

Apanhei o documento de identidade na carteira sobre o console. A fotografia correspondia à imagem no espelho, porém o nome registrado era o de um outro sujeito. Peguei o telefone celular e busquei meus contatos. Sem nomes ou imagens conhecidas. Naquele ponto da estrada não havia sinal de telefonia. Sem entender o que acontecia, selecionei a opção “home” no GPS e segui pela estrada, guiado pelo aparelho.

Apesar das inscrições em uma língua diferente da minha, as placas na beira da estrada me pareciam compreensíveis. O som do rádio voltou a funcionar. Um bipe sinalizou uma nova mensagem de voz no sistema de áudio do carro, que estava conectado ao telefone celular. Toquei a tela para ouvi-la: “Querido, você está atrasado! Está tudo bem? As crianças já estão na casa de minha mãe. Preparei tudo para que tenhamos uma noite só nossa”.

Seria uma esposa? Quem sabe uma namorada? Eu havia feito a escolha de viver sozinho. Nunca pensei em filhos. Por que eu aceitaria um relacionamento com filhos de outros? A voz me parecia familiar. Repeti a mensagem por várias vezes tentando identificar quem era. Parei o carro na entrada de uma via auxiliar. Curioso busquei a imagem da pessoa associada aos contatos do telefone. Fiquei surpreso com a constatação. A mulher na imagem era a de Maria, a garota dos meus sonhos na adolescência. Alguns anos mais velha, porém com mesmo sorriso e brilho no olhar. Eu nunca mais a havia visto, desde que decidi mudar de cidade para estudar. Percebendo meus sentimentos, ela sempre evitara cruzar com o meu olhar. Sempre tive a certeza de que o sentimento de afeto era unilateral.

Quando estacionei o carro no endereço sinalizado pelo GPS, me vi em frente a uma casa construída em estilo enxaimel, com um belo jardim em frente. Era bem diferente da casa de que me lembrava, da minha casa, construída com muito vidro e linhas modernas. Na caixa de correspondência o sobrenome do documento de identidade em meu bolso. Talvez fosse a minha casa ou quem sabe de alguém da minha suposta família.

Estacionei o carro e me dirigi a porta de entrada. Toquei o bolso e identifiquei o molho de chaves. Uma delas abriu a porta com facilidade. Tudo estava decorado com móveis antigos, com muitos quadros pendurados pela parede. Sobre a lareira um retrato meu, com Maria ao meu lado e duas crianças.

Um tanto perdido, identifiquei o lavabo, onde lavei as mãos. Espelhos contrapostos multiplicaram a minha imagem e a do ambiente. Pensei em como poderia existir um eu diferente, perdido nas dimensões. Depois, comecei a explorar o ambiente. A mesa da sala de jantar estava posta para dois. Era possível sentir o bom aroma que vinha da cozinha. Algo estava no forno e eu imaginava que fosse delicioso.

Voltei para a sala no exato momento em que Maria descia a escada. Ela estava linda e pela primeira vez pude experimentar a bela visão daquele sorriso lindo, daqueles olhos brilhando, tudo para mim. Ela se aproximou, me abraçou e me deu um longo beijo: “feliz aniversário de casamento, querido!”.

Fiquei atordoado. Meio perdido pensei que eu não tinha um presente para ela. Na verdade, mal podia lembrar a última vez em que eu havia comprado um presente para uma garota. Antes que eu conseguisse pensar numa desculpa, ela me agradeceu pelo presente: “as flores são lindas, meu amor”.

Tomei um banho. Jantamos, dançamos, rimos um bocado. Foi a noite mais incrível que experimentei em minha vida. Nunca me senti tão amado, nunca o sexo me fez tão feliz. Descansamos um pouco. Cochilei, ela também.

Quando acordei, ainda na madrugada, Maria ainda dormia, com uma bela e doce expressão de sorriso no rosto. Ajeitei o leve lençol que a cobria e levantei, para explorar um pouco da casa. Eu precisava entender o que acontecia.

Na sala de vídeo, abri o armário e encontrei alguns álbuns de fotografias. Vi e revi todas as imagens. Não era só a minha vida que havia tomado um outro rumo, meus pais eram outros, o mundo era completamente diferente. Liguei a televisão e comecei a navegar pela Internet, buscando canais de história. Constatei que a minha história foi influenciada por fatos que aconteceram ainda no século XVI, ou quem sabe antes, há milênios. Não saberia como precisar.

Eu acessava sites e mais sites, freneticamente, até que me deparei com um programa onde um físico explicava a teoria dos multiversos ou universos paralelos. Parecia inacreditável, mas na visão dele, em cada momento que tomamos uma decisão e se abrem caminhos alternativos, uma parte de nós ocupa espaço em universos diferentes e a combinação de ações e decisões nossas e de terceiros, constroem tais universos. Acredito que não haja um computador ou sistema capaz de calcular quantas seriam essas possibilidades de combinações de vidas. Voltou-me à mente as imagens multiplicadas no espelho do lavabo.

Fui surpreendido com as mãos suaves de Maria em meus ombros. Suas mãos se movimentavam sobe o meu corpo e o desejo tomou conta de nossos sentidos. Retomamos a experiência do quarto ali na sala mesmo.

Começou a chover e a água que caia sobre o telhado tornava o momento ainda mais interessante, intenso. Depois de experimentar mais um momento de êxtase, deite-me ao seu lado no tapete, tentando recuperar um pouco do meu fôlego, enquanto ela, deitada sobre mim, olhava fixamente em meus olhos. Eu a beijava e a chuva se acentuava.

Uma tempestade de raios se iniciou e depois de uma descarga elétrica houve um apagão. Ela me pediu que olhasse para ela e as luzes intermitentes dos relâmpagos iluminavam o seu rosto que conserva o sorriso e o olhar de desejo. Ela tocou os meus lábios com os dedos e disse o quanto me amava.

Não tive tempo para falar do sentimento, das minhas sensações naquele momento. Um clarão muito forte e um estrondo quase que imediato invadiu o ambiente. Fechei os olhos por alguns instantes. Quando os abri, meu carro havia invadido a pista contrária. Para evitar a batida, pisei bruscamente nos freios e meu carro rodou na pista. Voltei, para a minha pista, respirei por um instante e dei nova partida. Procurei o acostamento e, por sorte, encontrei um recuo, num ponto de ônibus.

Meu coração disparou. Desliguei o limpador do para-brisa e deixei a chuva escorrer enquanto eu me recuperava. Apanhei o telefone, eu precisava conversar com alguém, contar o que me acontecera. Porém, eu não tinha com quem falar. A tristeza começou a tomar conta de mim, por não saber como voltar para aquele universo, que por um breve espaço de tempo, me fez tão feliz.

Share




0 comentários:

Postar um comentário