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segunda-feira, 22 de maio de 2023

Bela a Filha, Belíssima a Mãe

 


Difícil não considerar certas inversões da ordem natural como uma depravação existencial ou divina, e dentre tantos casos manifestos cita-se o dos filhos que morrem antes dos pais. Embora o exemplo a seguir seja menos atroz e aviltante, ele igualmente demonstra ao ser humano a sua cômica e trágica posição no tabuleiro da vida, também a sua impotência, pois apesar dos incontáveis métodos destinados a embelezar homens e mulheres, nenhum é eficaz contra os que se revelam ocorrências emblemáticas desse princípio, como quando a filha perde em beleza para a mãe.

Assim deu-se com Isabela, linda desde o nascimento, linda até o morrer e o após. Compridos, lisos e claros, seus cabelos assemelhavam-se às quedas da água em uma cachoeira, os olhos a despontar feito rochas luminosas que porventura marcassem o precipício. Ao contrário da boca, carnuda e, porém, inocente, eram olhos lascivos, afeitos à carne e conhecedores dela, e se não fosse a silhueta de menina, as costelas e os quadris de criança, seria de uma beleza afrontosa aos deuses ou aos números.

E igualmente bela era a mãe, Gertrude.

Modelo original de mulher, além do rosto encantador Gertrude manifestava tantas curvas quanto exigia o esplendor, e tantas reentrâncias quanto suportava o imaginário de homens e astros. Quem sabe por ser a perfeição fruto de sua desmedida e independente vontade, amaldiçoou-a a fortuna com uma bela, mas não tão bela, filha, e malgrado as gafes ouvidas pelas duas, como quando confundiam-nas com irmãs ou amigas, ou como quando mais elogiavam o perfil de Gertrude, o relacionamento entre elas era primoroso e pacífico, contrário ao suposto mito da rivalidade feminina; e quem sabe se por entender a superioridade estética da mãe como efêmera e temporária, afinal Gertrude haveria de envelhecer, Isabela não se afetava, ou não demonstrava ser afetada, pelo segundo lugar.

Assim viviam, e viveram, em harmonia, mesmo quando o tempo, contestando o tácito entendimento de que os dotes físicos de Gertrude haveriam de definhar antes dos primores juvenis de Isabela, ampliou o abismo de beleza entre as duas – abismo este fundamentado em rugas, estrias e pelancas, em sinais ou manchas e na flacidez da pele, mas um abismo que, com a licença da razão, pendia para o lado de Isabela, pois Gertrude conservava-se idêntica não obstante os anos, não obstante as décadas. Tamanha transformação manifestava-se em novas indiscrições, em gafes cuja imprudência, se destinadas a outras mulheres, às intolerantes mortais, resultaria em agressões e ofensas – dir-se-ia quando acreditavam ser Isabela mãe de Gertrude.

Conquanto os enganos e comparações de terceiros, ou o ofensivo contraste entre mãe e filha, amavam-se elas de amanhã à manhã, amigas e companheiras de sempre, e não se pense que com a idade Isabela conheceu da feiura e decrepitude. Não, continuava linda, linda acima das outras, só não acima da mãe, e é de se indagar se o seu dote não era, ao invés de virtude carnal, o da plenitude interior, a faculdade de aceitar a natureza, as circunstâncias e o acaso e, a despeito das angústias e consternações, gozar da vida em sua totalidade.

Contrapartes à excelência visual de Gertrude, assomavam nela, com a idade, as falhas e deficiências características aos mais velhos, súbitos esquecimentos e desequilíbrios infantis, devaneios e distrações, o último e fatal deles ocorrendo ao descer um degrau. Acompanhadas dos familiares, visitavam elas pontos turísticos estrangeiros, e ao pisar de mau jeito, ao contemplar a união do oceano com o horizonte, Gertrude desestabilizou-se, abriu os braços em desespero e pendeu rumo à escadaria. No meio instante anterior à queda, Isabela assistiu a mãe esvoaçar e, em câmera lenta, tombar para trás, e se não esticou as mãos e salvou-a foi porque nunca antes a vira tão sublime.

Durante o velório, com estranhos e fugidios sorrisos, Isabela não disfarçava a sua felicidade.


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Erik K. Weber
Gaúcho.






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