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sábado, 13 de maio de 2023

Uma amiga

 

Uma amiga

Um homem, vestido como se estivesse a contracenar nalgum palco, dos muitos que existiam em teatros da cidade, caminhava, trôpego, ao sabor da corrente humana. Ia alheio a tudo e a todos. Deixava-se levar, como se nada já o interessasse.

Naqueles preparos, e escondido atrás de uma máscara, personificava a figura de um velho, talvez próximo da loucura, que carregava, dolorosamente, o peso dos anos. Pelo aspecto, parecia realmente um velho e louco. Na realidade, não era nem uma coisa, nem outra. Não tinha sido o passar dos anos, mas as recentes agruras da vida que lhe tinham deixado profundas marcas no corpo e, especialmente, na alma. A barba crescida, o cabelo desgrenhado, a sair dum amarrotado chapéu, a magreza do corpo e as exóticas roupagens, não deixavam ninguém indiferente à sua passagem.

Mesmo na sua louca correria, os passantes, não deixavam de lançar um olhar interrogativo e admirativo para aquela estranha figura. Tinha grandes parecenças com o cavaleiro da triste figura, embora, mais a preceito: com um cavaleiro da figura triste. Também podemos afirmar que, se ele chamava a atenção dos outros, os outros para ele, seguiam à margem da sua indiferença.

─ Ó António! ─ ouviu-se gritar uma voz feminina, por cima do barulho próprio do vai e vem dos transeuntes.

O interpelado, olhou para o sítio de onde veio o chamamento, reduziu o andamento e parou no passeio, à espera da mulher do grito. Um ligeiro movimento da cabeça e um franzir da testa, davam a impressão de que ele não estaria a reconhecer quem seria aquela pessoa que o tinha chamado.

─ Bom dia, meu amigo! Há quanto tempo. Onde vais com tanta pressa e vestido com essas roupas? Vais a algum teatro de rua ou agora andas também a fazer de estátua? ─ disparou de rajada. E, sem esperar de resposta, continuou: ─ Não tenho nada contra aquela malta que ganha a vida dessa forma, mas não te estou a ver parado ali horas e horas. Tu és um homem de acção, de movimento. É certo que nos temos de adaptar às vicissitudes da vida. É verdade que e a vida agora parou e nós temos de andar.

─ Ó meu Deus…não posso acreditar…És a…

─ Mas…, porque vais tão disfarçado! – antecipou-se a mulher. ─ Será uma forma de luta? Será outra coisa qualquer? Ou será que queres passar despercebido? Se é isso, digo-te que, até eu, tua amiga e companheira de muitas lides, só te conheci, vê lá, pelas mãos. Estás irreconhecível.

─ Júlia! Que agradável surpresa, não sabia que já tinhas regressado, por isso, não te reconheci de imediato. Também estas máscaras iludem-nos, um pouco. Porque não disseste nada?

─ Afinal não me enganei, és tu! Cheguei há poucos dias e encontrei a vida da cidade virada do avesso. Ia procurar-te assim que tivesse a ideias mais arrumadas. Fomos todos apanhados pelo olho deste furacão. ─ respondeu, muito contente, mas meio atrapalhada e com um tom de voz a roçar a desculpa.   

─ Compreendo. ─ disse  o amigo, num tom magoado, E num repente, numa inflexão de voz, própria de grande um actor, atirou: ─ Querida amiga, há quanto tempo. Perdi o contacto desde que foste para Nova Iorque e com essa máscara nem te reconhecia, se não falasses. Parecemos seres do outro mundo, não conseguimos distinguir os rostos atrás das máscaras.

─ É verdade, e nós até estamos habituados a conviver no nosso dia-a-dia com a caracterização, ou não fossemos, nós, artistas do teatro.

─ Pois é, mas parece que com esta maldita pandemia até nos esquecemos de que estamos a viver a realidade. A vida, para nós actores, tornou-se na própria ficção… mas não é ficção nenhuma, não tem fim escrito.

─ Mas ainda não me disseste o que andas a fazer assim vestido?

─ Ficção, por ficção, apeteceu-me andar por aí caracterizado, estamos na era da máscara, porque não andar vestido como se vivêssemos noutra época, encarnando um personagem de outros tempos. Sempre fujo um pouco à realidade. Finjo, ou não fosse eu um actor.

 ─ Estranha época a nossa. ─ disse a Júlia.

─ E, além disso, chamo a atenção para a nossa tragédia. Para a situação limite em que nos encontramos, para o eminente desastre. Temos reescrever esta peça de teatro em que foi transformada as nossas vidas.

─ Vá, vamos ali àquele café, tem esplanada e tudo, assim estamos mais à vontade. Aproveitamos e pomos a conversa em dia.

─ Deixa lá, fica para a próxima, estou com pressa. Tenho de ir tratar de uns assuntos inadiáveis, estou em cima da hora.

Estás a brincar comigo, não me consegues enganar, mesmo escondido por essa máscara, os teus olhos dizem tudo. Ainda não me esqueci de ler atrás do visível. Que assuntos?

─ Espertinha, o que é que vês, diante de ti? Um louco, a combater outras loucuras…

─ Não, não vejo nenhum louco, vejo um artista destes tempos, apanhado pelo desconhecido, por um presente virado ao contrário e por um futuro a sumir-se no infinito. Vejo um amigo a quer fugir de tudo, a desistir.

─ Bom dia! ─ saudou o empregado da pastelaria.

─ Bom dia! Dois cafés. Queres um bolinho acompanhar? ─ perguntou a Júlia.

─ Não obrigado, fico-me pelo café, minha querida amiga.

─ António, o que tens feito nestes últimos tempos?

─ Nada, a companhia desfez-se, sem espectáculos e sem subsídios, nada mais nos restou do que ir cada um para seu lado.

─ Então e o subsídio do estado para a cultura? Não te calhou nada em sorte?

─ Na primeira fase do confinamento ainda recebi alguma coisa, que deu para aguentar estes tempos de agrura, mas nesta segunda fase, dizem que estão a estudar as situações. Até ao momento, nem um ceitil para amostra.

  E como é que te tens aguentado?

─ Só Deus e eu é que sabemos. Um dia, quem sabe, talvez nas minhas memórias. Até lá, nem às paredes confesso…bem, agora tenho de ir embora. Ofereces-me o café?

Júlia seguiu, com o olhar, o amigo e companheiro de profissão. Um olhar carregado de preocupações, à mistura com uma sombra de angústia e medo.

Foi a primeira vez que António deixou de pagar o seu próprio café. Era estranho, porque ele fazia ponto de honra que cada pagasse o seu, não custava nada e ninguém saía sobrecarregado.

Naquele dia pediu à amiga que fosse ela a pagar.

Uma onda crescente de suicídios tinha tomado conta de número já muito significativo de pessoas, apanhadas nas malhas do desespero.

«O António, não! Era um lutador. Toda a sua vida tinha sido feita a pulso. Não seria, com toda a certeza, o terramoto social e laboral que o iriam destruir. Tudo aquilo que conquistara, a fama, o prestígio, a situação financeira, tinha sido obra dele e não favores ou benefícios. Nunca se vergara. O palco era o universo e ia para além dele, era o infinito.»

 E foi aqui, chegado a este ponto, que Júlia se sobressaltou ainda mais, sem palco, o infinito tinha fim e os actores também.

Levantou-se, pagou os cafés e correu, voando, atrás do amigo.

 

 

 

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