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sexta-feira, 19 de maio de 2023

É querer muito

 



Mesmo com dores fortíssimas ela foi mandada para casa três vezes, em três semanas seguidas: “A senhora não tem nada, dona Alzira. Volte para casa e descanse. Isso é mal de preocupação”. A voz do médico me doía, porque vó, no mesmo compasso, gemia baixinho, se contorcia e se encolhia que nem embuá atacado, para “não incomodar o povo”. Ali, eu tinha dezesseis anos. Não podia fazer muito, a não ser chorar, para tentar comover aquela ruma de gente que passava de branco, de um lado para outro, já cansada de tudo. Lembro-me que uma senhora, que cuidava de uma criança, chegou perto e nos perguntou se poderia ajudar. Vó respondeu que estava tudo bem; que “o menino” chorava porque era “manhoso”. “Criado por vó, sabe como é, né, minha filha?!”. A minha raiva no momento era deixar como estava, não mexer mais em nada, já que ela queria o fim. Contudo, vinham, no instante seguinte, o peso na consciência e o medo da solidão. “Se vó morrer, tô lascado… Meu pai não quer saber de mim. Minha mãe morreu. Não tenho chance, morro também”. Colei na perna de um médico. “Menino, o que é isso, me solte agora, ou vou ter de chamar os seguranças!”. Soltei-o, mas caí de joelhos, com as mãos postas, em sinal de súplica: “Por favor, doutor, minha vó está morrendo. Não tenho mais ninguém. Cuida dela pra mim”. Ele me levantou do chão, confuso, colocou-me numa cadeira, ao lado de vó, e fez um montão de perguntas. Parece que eu a sensibilizei; ela já não respondia por si; estava, agora, preocupada com o neto, o único neto, que ficaria, se ela morresse, entregue às maldições do mundo. “Doutor, minha barriga tá embolando, as tripas se apertam, fico em ares de ter um passamento… O senhor é um filho de Deus, me acuda!”. O médico, enfim, relaxou a cara amarrada, olhou para os lados e chamou uma assistente. “Essa senhora deveria estar na emergência. Prepare os papéis para transferi-la. Ela vem para a minha sala para avaliações clínicas”. A senhora que estava com a criança, sorridente, me olhou e deu uma piscadela; talvez a primeira fã do espetáculo que montei. Fomos à sala do médico e lá compreendemos a gravidade. “Olha, Sra. Luiza, há decerto uma inflamação na região abdominal. Noto a presença de algum corpo estranho, que pode estar comprometendo o funcionamento regular dos órgãos. Vou pedir exames de imagem”. Vó, apesar da dor, se sentiu gente aí; revigorou até a fisionomia; havia interesse e curiosidade. Sendo caso de emergência, esperamos o tempo mínimo: oito horas no corredor do hospital. Vi gente sendo carregada, com perfuração na barriga, sangue escorrendo pelo chão; vi ressuscitação, com choques elétricos; vi um velhinho morrer no colo da filha. Para mim, a demora era penosa, estava comendo tempo precioso de vida. Um senhor, com a perna esfacelada, esperava há dois dias vaga para fazer a cirurgia. Ele gritou – de raiva, não de dor – dizendo que vendia a moto para pagar a cirurgia – coitado, desesperado, num hospital público. Já me preparava para dormir aí uma eternidade. Por sorte, vó conseguiu fazer o bendito exame. Ainda demoraria para sair o resultado. Eu preferia que ficássemos um, dois dias, para resolver de uma vez. Às onze da noite o resultado exame saiu e foi direto para as mãos do médico. Ele nos chamou e disse que tínhamos sorte, porque hoje era o seu dia de plantão e, por isso, poderia assumir a demanda. Vó gemia e agradecia, espremida, se vendo de dor”. Só assim, confirmado o quadro, mandou que ela tomasse doses pesadas de analgésico. Em seguida, me chamou no canto e contou: “Você é um menino responsável… Fique o máximo de tempo que der com a sua vozinha: ela está com câncer. Não creio que dure muito, mas faremos o possível para que não sinta dor”. Enquanto vó recebia a medicação, eu varava pelos corredores do hospital, com as mãos na cabeça, pedindo que Deus me ouvisse; se fosse de levar “voinha”, que me levasse junto. Morri um pouco a cada dia, nos dezessete que permanecemos no hospital. Ela foi mandada para casa, para morrer, porque “nada mais pode ser feito. Sinto muito, João. Seja forte. Você é um menino ajuizado. Conte comigo em alguma precisão”. Acompanhei a mulher se desmanchar em casa. Ela tinha uma fraqueza na barriga e se esvaía em sangue. De minha parte, queria que vó partisse, de uma vez por todas; não aguentava mais vê-la sofrer. Ela morreu no sétimo dia. Tive de chamar uma vizinha, a Cida, para preparar o funeral. Foi rápido. Tudo que eu precisava era bolar um plano para sobreviver. Cida prometeu que, enquanto pudesse, me daria um prato de comida por dia; não mais, pois não podia. Nunca me escorei. Primeiro, comprei umas frutas, com um dinheirinho que vó guardava, e fui vender nos sinais. Aprendi a ser paciente, a ter humildade e a saber conquistar. Alguns compravam por pena, dava para ver; outros, para se verem livres da minha cara de abandono. Nunca fingi. Usei somente a arte a meu favor. Pouco tempo depois conheci a Jana – Janaína Santos –, uma puta atriz, que me chamou para acompanhá-la nos seus eventos. Ficamos amigos e logo ganhei a sua confiança. Subi ao palco pela primeira vez em 02 de maio de 2003. De lá para cá, muita emoção e suor. Hoje, vivo dignamente na mesma casinha de vó, para não me apartar de seu cheiro, de suas lembranças. Tenho certeza: ela, divina, providenciou as melhores oportunidades. Claro, é um dom, mas também é querer muito viver.


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