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segunda-feira, 22 de novembro de 2021

A Lei da Conservação da Tragédia

 


Uns declaram o universo como se feito e efeito do nada, outros acreditam-no o corolário de relações ocultas e desconhecidas, ou obra de seres divinos, ou, mais então, resultado de transformações a nós inescrutáveis e inomináveis. Mistério semelhante dá-se com a atividade artística e seus ânimos criativos, e se muitos a presumem mero, e fortuito, acontecimento, entre os arautos desta convicção não figurava Diones. Pois a arte tem sua origem na destruição, declarava ele, e até os casuais esboços ou linhas hão de reivindicar, para existir, a extinção de entes e objetos, de formas e essências associadas ou não às obras concebidas. Tal elo destrutivo é personificado, de modo evidente, na figura do artista vitimado por seus próprios excessos, o artista cujo sacrifício resulta em perspectivas inéditas e obras grandiosas, e todavia as mesmas leis de aniquilação e gênese regem a vida dos criadores e criadoras harmoniosos e saudáveis, dos homens e mulheres exemplares – em comum às duas classes, e aos muitos outros artífices de sonhos, o desconhecimento quanto a esse nefasto mecanismo.

Assim refletia Diones e, com suas palavras, anotava os raciocínios e observações num caderninho de couro. Paisagista renomado, contrariava a sensibilidade de seu intelecto a constituição taurina, as mãos grossas e calejadas e o maxilar definido, e malgrado agora, após muito meditar acerca da arte, não mais ignorasse as condições para a concepção de suas obras, desconhecia os elementos específicos que foram, eram e seriam sacrificados ao conceber um quadro ou tela.

Pertencente à classe dos regrados e ordenados, antes de levantar-se calçou os chinelos, e ao avivar o lume da lareira sobrevinham-lhe pensamentos relativos não só ao reconhecimento de padrões mas, também, às medidas e limites desta faculdade; e almejava, como o fogo de certa forma almeja o céu, descobrir as especificidades do sistema de pesos e contrapesos a si imposto pelas musas. Estagnado frente ao obstáculo de um enigma metafísico, aprisionado por muralhas insensíveis às suas virtudes, a saber, a imaginação e a invenção, Diones postou-se em frente ao cavalete e, antes de iniciar a próxima pintura, antes da primeira pincelada, suplicou às suas outras versões, e aos seus outros e silenciosos eus suplicou uma revelação.

Assim fez, assim foi.

E terminou a paisagem em quatro meses.

Suas reflexões eram, então, distintas, e sentado no sofá, ao abrir o jornal como há tempos não abria, leu acerca de dois infantes falecidos em um acidente. A notícia atingiu-o no espírito. Soube, como só se sabem as verdades, não através de argumentos, números ou palavras, mas mediante certezas interiores, dir-se-ia a inefável linguagem da alma, que ambas foram sacrificadas em benefício de sua última tela, e já de pé e caminhando, nem tanto se culpando, para certificar-se da relação decidiu por iniciar outro painel.

Foram mais três, quatro meses, e concluiu-o. Ao fim do quadro, e do seguinte, tomou conhecimento de mais acidentes com crianças, todos eles fatais: a primeira, decapitada por um trem de carga; a segunda, atropelada pelo triciclo de um palhaço de circo. Suando frio, mordendo os lábios, enfim deslindara-se o macabro mecanismo de seu criar, e para além do fato de esta descoberta demandar um número insignificante de acontecimentos, ou de provas, abismava-o a circunstância de como certos eventos, quando esclarecidos, afiguravam-se tão simples, tão simples e tão terríveis, a ele não apresentando-se alternativa senão a de abandonar a arte, deixar de viver e deixar-se ficar. Fiel à resolução, ordenou os pincéis e vasilhas, espátulas e paletas e, pelo período de dois meses, aposentou-se – e só tornou a pintar quando uma criança malcriada lhe chutou a canela.


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Erik K. Weber
Gaúcho.






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