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quinta-feira, 25 de março de 2021

A genética prática dos pastores

 


Abençoado! Um sentimento de bem-aventurança cintilava-lhe no íntimo. Desfrutar dos bens necessários, do respeito dos outros, de felicidade. Tudo isto Deus e a Igreja Dele trouxeram e providenciavam continuamente a Rúben, o atual nome de Amadeu Rodrigues.

Antes, tinha sido vendedor de seguros; depois, de apartamentos. Finalmente, um bendito dia, acompanhara um colega a uma sessão daquela Igreja. O amigo não o enganara: aquele meio prometia possibilidades imensas e não imediatamente percetíveis. Havia no entanto que aprender a Bíblia a fundo. O Livro sagrado era a origem, a ferramenta e o objetivo. Seguindo a Bíblia, tinha-se acesso a conhecimentos de todo o tipo, desde as grandes revelações das origens, às verdades da vida; desde a mediação transcendente do saber cósmico, ao domínio das pequenas atividades quotidianas. Rúben empenhou-se a fundo. Leu-a em poucos meses, em jornadas pela noite adentro. Frequentou sessões de aprofundamento, apanhou cada argumento a aplicar a cada questão mais polémica.

A ascensão na hierarquia foi rápida e prometedora. Habituado a interpretar sinais faciais e conhecedor de outras atividades que lhe tinham exigido capacidades de argumentação e de persuasão, em breve integrava a elite da Igreja. Fazia pregações memoráveis, citava partes da Bíblia, mostrava como ela continha, já há milhares de anos, grandes conhecimentos que, só mais tarde, os Homens pensaram descobrir, e já predizia muitas das descobertas atuais: a Bíblia indicava onde estavam localizados os poços de petróleo, chamando-lhe betume; antecipava claramente o submarino, com Jonas a viajar no ventre de uma baleia; e o avião, com Enoch a ser levado para os céus por um carro de fogo; profetizava as missões humanitárias, com o lançamento do maná; e os bombardeamentos, com a destruição de Sodoma e Gomorra. A seguir às predicas, Rúben incitava os doentes e os mal-amados a pedirem a cura ao Senhor, em paroxismos de aflição coletiva e algumas curas milagrosas. Por fim, pedia o dízimo, tão justo e necessário que até Moisés o colocara na Lei.

Se em tempos mosaicos o dízimo era dado em géneros, no século XXI mais valia que os aflitos da cidade não andassem carregados com verduras ou criação. O dinheiro transporta-se com muita facilidade e também com prontidão se separa nas quantias necessárias. Era o dinheiro que fazia viver e melhorar a Igreja do Senhor. E os seus ministros. Nem em tempos de especulação imobiliária o então Amadeu vivera com tal bênção económica. Habituou-se a boas refeições, primeiro, e depois a boa roupa e bons carros. De bem-aventurado era o seu estado de espírito.

Rúben nunca deu guarida a qualquer pensamento de remorso. Sentia-se a prestar um serviço — o mais importante —, trazer esperança ao coração dos desesperados. Pela vontade do Senhor. E como ele o fazia bem!

Como primeira prioridade, o Homem procura alimentar-se, sobreviver. Por vezes, consegue-o, em tal quantidade e com tal facilidade, que a anterior necessidade começa a ser soterrada pelos apelos do estado de abundância. Então, acumular, esbanjar, experimentar o exagero do luxo e da luxúria ganham foros de estilo de vida. A luxúria, ah, a vertigem dos sentidos!

Cedo, Rúben percebeu que seria fácil obter sexo naquela mole de mulheres carentes e sugestionáveis. E bem percebia como era fácil estender o clima coletivo de carências individuais a um estado de espírito de ajuda mútua. “Temos de ser uns para os outros, neste mundo tão cruel.” “Temos de ver o que cada um dos nossos irmãos precisa.” “Eu preciso que o Senhor me ajude, mas, e eu posso ajudar alguém?” “Será que posso ajudar o meu irmão?” “O que é que ele precisa?” “O que é que eu posso dar, eu que recebo tanto do Senhor?” E, se não se via a aceitar intimidades com a maior parte daquelas mulheres, outras havia a quem podia abrir exceções e, solenemente sonso, aceitar o dízimo em géneros…

Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra.” Dinheiro a rodos, sexo até à exaustão, o que faltava? Nada, ou quase nada.

A dica para o patamar seguinte veio de um simples programa de televisão sobre a vida selvagem. Naquela noite, mostravam-se técnicas de manha e embuste usadas por vários animais, para que os seus genes chegassem em maior quantidade e segurança à geração seguinte. Sentiu uma iluminação ao perceber como uma simples ave desenvolveu procedimentos de dissimulação e parasitismo, para que ingénuos casais de minúsculas carriças chocassem os ovos e alimentassem as crias de uma espécie bem maior: o manhoso cuco.

Hum, espalhar o seu sangue pela população, olhar a multidão de fiéis na sala da sua assembleia e saber que inúmeros deles eram seus filhos secretos, a crescer felizes e saudáveis, sem ter ele de se sacrificar nas prosaicas tarefas de levar bebés à vida adulta! Muitos bebés; muitos adultos, também eles a propagar o seu sangue. Era, sem dúvida, um patamar apetecível. Um cúmulo de vida.

Um pormenor, no entanto, parecia poder complicar esse intento: Rúben era o único ruivo, numa comunidade maioritariamente de cabelo escuro. Nada a que o Senhor e a sua palavra não pudessem fornecer solução. Pois não explica a Bíblia, no capítulo 30 do Génesis, como procedeu Jacó, certamente com a inspiração do Senhor, para obter vantagem na divisão dos rebanhos, quando quis terminar o contrato com o sogro, Labão, e afastar-se para terras mais a ocidente com mulheres, filhos, escravos e rebanhos?

Combinou com o sogro que ficaria com o gado malhado, enquanto o pai das suas mulheres, Lia e Raquel, ficaria com o de uma só cor — ovelhas brancas, cabras negras. Aceite o trato, Jacó colocou varas nos bebedouros, às quais tirara partes da casca. Quando os rebanhos vinham beber e as fêmeas eram aí cobertas pelos machos, ao emprenharem com os olhos postos nas varas às manchas vinham a ter crias malhadas. Pelo contrário, quando Labão quis um trato inverso, Jacó colocou nos bebedouros varas de uma só cor; e as crias passaram a nascer, maioritariamente, de uma só cor. Com este estratagema, obteve Jacó um rebanho muito maior do que o do seu sogro, para glória do Senhor.

Assim também Rúben esperava vir a ter um rebanho de filhos apreciável e não lhe era difícil imaginar-se um patriarca bíblico. Se Jacó, com duas mulheres e duas escravas tivera doze, quantos poderia Rúben vir a ter, com tanta mulher na comunidade? A Bíblia continha todo o saber do mundo, todas as soluções, para glória do Senhor e dos que O seguiam. Aí vinha ela de novo em auxílio do abençoado servo do Senhor.

A pregação de Rúben alterou-se subtilmente; passou a enaltecer a vida de família, a bênção de uma prole, a excelsa graça de continuar-se nos filhos. Passou a ser mais permeável a aproximações de irmãs menos apetecíveis, desde que em idade fértil. Só tinha dois preceitos incontornáveis: não usar preservativo, ou furá-lo previamente; e colocar sempre uma peruca negra, argumentando que queria imitar o Senhor, tanto quanto possível. Se a técnica resultava com as ovelhas e as cabras de Jacó, com certeza que também resultava com o rebanho do Senhor.

Muitas gravidezes depois, algumas das quais tinham constituído autênticas impossibilidades nas contas de cabeça das neo-grávidas, mas que Rúben se encarregava de encorajar, por serem certamente a vontade do Senhor, começou a perceber-se que estavam a nascer vários bebés ruivos. Surgiram dúvidas, interrogações, tentativas de explicação: Influxo transcendente trazido pelo inspirador pastor? Sinais de algum evento miraculoso? Alteração somática induzida pelo estado de beatitude alcançado no local santo da igreja?

«Não devem ter conseguido tirar da ideia a cor forte do meu cabelo», presumia Rúben, surpreendido.

Quando já se tornava difícil atribuir a singularidade capilar a causas metafísicas e antes que o seu rebanho em disparada o dizimasse, Rúben pediu à hierarquia transferência para a Escócia, terra de ruivos, onde certamente seria mais fácil continuar a espalhar a palavra do Senhor e a aumentar a Sua Igreja.

Joaquim Bispo


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Imagem: Bartolomé Murillo, Jacó põe as varas ao gado de Labão, c. 1660–1665.

Museu Meadows, Dallas, EUA.

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