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sábado, 20 de março de 2021

METADES


Somos Thales e Tadeu.  Digo “somos” porque viemos gêmeos univitelinos 

e assim percorremos os primeiros anos com as mesmas feições, o mesmo andar, 

as mesmas roupinhas, o mesmo terninho, as mesmas meias três quartos, 

as mesmas gravatinhas borboleta. O mesmos topetes de Gumex.


Ainda crianças, levamos a mesma porrada. Perdemos nossa mãe, 

nosso pai endoidou e deu um tiro na boca, e nos dividimos na vida. 

Eu fui pra Barbacena para casa de uns tios, onde mais crescidinho entrei 

para a Escola Preparatória de Cadetes do Ar, enquanto meu irmão ensaiava 

no Rio, morando com primos distantes, os primeiros estudos de Medicina.


Nunca mais nos vimos. Pouco nos sabíamos.


Até que apareci para assistir à final Brasil e Uruguai da Copa de 50 no Maracanã. 

Fiz questão de convidar meu irmão para ir comigo. E fomos. Depois de tantas vidas 

dispersas, não nos reconhecíamos mais como gemelares crianças que fomos, 

sem identificação alguma que houvesse perdurado. Ele ainda usava Gumex. Eu não.


Quando Ghiggia fez o segundo gol do Uruguai, colocando a alma brasileira na lona, 

houve um silêncio de doer os ouvidos como se tivessem enfiado um cotonete de arame. 

Soluços explodiram ao nosso redor. Acabou o jogo, o povo foi saindo devagarinho. 

Lembrou o cortejo da mamãe.


Foi neste momento que meu irmão, impassível, tirou um limão do bolso, descascou 

com os dentes e começou a chupar. Chupou, chupou, chupou, até chegarmos sem trocar 

palavra na casa do primo distante onde ele morava, perto do Maracanã.


Um trauma. Mas não tão aflitivo quanto à curiosidade que começou a me perseguir 

e nunca tive coragem de perguntar: por que chupar limão?


Eu virei piloto de avião, larguei a caserna e fui para os Estados Unidos 

treinar em Constellations – voltei direto para a cabine de um deles da Panair. 

Meu irmão formou-se em Médico Legista. Mesmo à distância, sabia por fontes 

confiáveis que ao chegar em casa depois de uma jornada dissecando defuntos, 

danava a chupar limão.


Enquanto eu flanava mundo afora, conferindo de fato o mapa mundi da parede 

da escola, não tinha tempo para conviver com ele. Na verdade, não tinha 

tempo para ele. Mas sabia de seu casamento, do casal de filhos e do casarão 

na Tijuca, que comprou de tanto escarafunchar os mortos com extrema habilidade. 

Virou diretor do IML. Mas nunca deixou de chupar limão.


Quando a filha deu desgosto, se enrabichando com um sujeito de cabelo crespo, 

meu irmão passou a chupar limão no café da manhã. Quando as brigas com a mulher 

atingiam os píncaros da insanidade, trancava-se no banheiro e chupava limão.


Quem me contava essas coisas era uma amante que tinha no Rio, uma psicóloga 

bem mais nova que eu, a tal fonte confiável, por acaso do destino, vizinha 

do casarão do meu irmão. E como vizinha, amiga da família dele, sem que nunca 

revelasse a nossa clandestinidade. Nunca falou de mim para meu irmão, mas 

sobre ele, dizia que vivia chupando limão.


Minha formação militar, objetiva, técnica, metódica e cartesiana não me deu 

margens a pensamentos profundos. Mas minha amante defendia que meu irmão 

compensava as agruras da vida chupando limão. A acidez cítrica extrema lhe 

provocava um alívio, por encontrar entre a língua e o céu da boca algo mais 

ácido do que os piores momentos que a vida oferecia. E assim ia vivendo. 

Talvez fosse isso, não sei. Sou bom em aterrissagens, decolagens e não em 

interpretações, subjetividades e diagnósticos de psicólogos. 


Numa manhã cheguei de Paris e, como de costume, fui para o Hotel Novo Mundo 

no Flamengo encontrar minha amante. Ela chegou muito atrasada, esbaforida e 

me veio como uma notícia: “seu irmão acabou de morrer de infarto, debruçado 

em cima de um cadáver no Instituto Médico Legal”. Horrível. 

Imaginei um corpo sobre o outro. 


No velório não consegui chorar. Olhei o rosto céreo do meu irmão, vi minha 

cara com algodão no nariz. Mas nem a lembrança de nós meninos de gravatinha 

e meia três quartos mexeu com minhas entranhas. Cumprindo protocolo, abracei 

os filhos e consolei a viúva, agradecendo seu último esmero em pentear o cabelo 

do marido morto com Gumex. Nem uma lágrima me veio. Nem nó na garganta. 

Nem quando o caixão baixou sepultura.


Saí do cemitério do Catumbi sozinho, minha amante achou por bem não me acompanhar. 

Peguei um taxi que me deixou numa feira. E comprei uma dúzia de limões. 


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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
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