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quinta-feira, 9 de abril de 2020

Utopia ou Ilusão


Sentado na pedra que afeiçoara como cadeirão no cume mais alto da ilha há tantos, tantos anos, Ira, o vigilante, contemplava a magnífica cidade gigantesca que vira crescer a partir de um pequeno aglomerado de cabanas. Com a sua memória de imortal, recordava todos os passos da longa jornada deste projeto tão querido dos deuses.
Nunca soubera de quem fora a ideia de criar uma civilização perfeita, de uma utopia que pudessem estudar por comparação com as outras nascidas do labor e dissensões dos humanos que se iam espalhando pelo mundo. Sabia apenas que a ideia subjacente era provar que Zeus errara ao despoletar o Dilúvio de que apenas se salvara Deucalião e a família, numa tentativa de começar de novo a penosa evolução da humanidade. Que os humanos eram inerentemente bons e que os males que criavam se deviam apenas às condições em que viviam.
Face à ironia da tarefa que o esperava, não conseguiu reter um sorrisinho amargo, que teria surpreendido todos os que o conheciam como o austero e rígido sumo-sacerdote de Posêidon, a sua mais recente – e última – encarnação. Mas o momento era suficientemente único para justificar uma quebra em hábitos de longa data.
Encarregue desde o primeiro dia de vigiar a evolução da experiência e de relatar aos seus autores os seus momentos mais significativos, adotara desde o início um papel religioso que lhe permitisse estar no meio de tudo o que se passava sem que a sua presença fosse considerada estranha ou inoportuna. Adotara incontáveis papéis e aspetos, mas mantendo sempre o nome Ira que lhe fora dado pelo próprio Zeus como símbolo do seu papel. Evoluíra pois de pouco mais de um xamã com ritos secretos numa cabana vedada à população a sumo-sacerdote de um templo magnífico, repleto de mármores raros, ouro, marfim e outros materiais preciosos, símbolo bem justo da magnificência, riqueza e poder que Atlântida alcançara.
A sua tarefa ficaria concluída hoje, mas apesar de ansiar por passar uns séculos a desfrutar dos prazeres do Olimpo, Ira deixou-se ficar ali sentado, em sombria contemplação do que podia ter sido e do que era realmente.
A experiência começara bem, muito bem até. Com a ajuda dos deuses, a pequena povoação inicial crescera rapidamente em tamanho e riquezas. Tudo lhes corria bem, nunca havia uma seca, uma cheia, o tempo era sempre o mais adequado às culturas do momento, as redes vinham cheias de peixe, havia fartura para todos. Quando era altura de um novo passo na sua evolução, viajantes misteriosos davam à costa trazendo, por mera coincidência, os conhecimentos necessários para que evoluíssem.
E em breve – para a noção de tempo dos deuses – surgiu uma cidade próspera e magnífica onde todos tinham mais do que o suficiente, onde não era preciso labutar, onde as doenças eram desconhecidas e a morte chegava tarde e tranquila. Parecia que os deuses tinham realmente razão, que nas condições certas, sem terem de labutar para sobreviverem, os humanos viviam em paz e harmonia, dedicando as suas energias às artes e ao apreço do que os rodeava. E isso numa época em que em zonas vizinhas os povos tinham de lutar duramente para sobreviver e estavam quase permanentemente envoltos em guerras e quezílias.
Mas pouco a pouco, tão lentamente que chegara a pensar que era engano seu, Ira notara um descontentamento crescente. Pelo que via e ouvia, parecia que a situação de bem-estar permanente e de falta de esforço não agradava a todos. Havia os que desistiam simplesmente de tudo, fechando-se em casa longe de tudo e de todos à espera da morte ou, até antecipando-a. Outros tentavam dar sal à vida obtendo um quinhão maior das riquezas existentes, dominando, pela força ou por palavras, outros de espírito mais fraco. Outros, ainda, dedicavam a sua inteligência a descobrir novos prazeres, por muito perversos que fossem.
E a sociedade perfeita começou a transformar-se, primeiro lentamente, depois cada vez mais rapidamente. A cidade, a ilha que lhes parecera outrora perfeita deixou de ser suficiente. Lançaram-se à conquista, melhor, ao domínio de outros povos, tarefa facilitada pela sua superior tecnologia. Formaram-se fações dentro da cidade, que se envolviam em disputas mais ou menos ferozes. E apesar da magnificência dos templos, a religião era apenas fogo-de-vista, uma razão para verem e serem vistos e não um conjunto de preceitos a cumprir.
Era com uma relutância crescente que Ira subia ao Olimpo para relatar o que se passava. Sabia que o descontentamento crescia e que havia cada vez mais vozes a exigirem o fim da experiência. Mas Zeus não se pronunciava e até que o fizesse, tudo continuaria na mesma. Ira suspeitava que, ofendido pela premissa de o provarem errado, Zeus queria que todos vissem claramente o resultado das suas ideias.
E chegou finalmente o dia. Com o acordo clamoroso de todos os deuses, Zeus decretou o fim da Atlântida. E desta vez, deixou implícito que não haveria sobreviventes e da cidade não restaria o menor vestígio.
Mas após tantos séculos ao serviço daquele povo, Ira não conseguia aceitar que desaparecessem sem deixar rasto. Lançou pois mundo fora um ser ténue que continha a história de uma Idade de Ouro desaparecida e, sobretudo, o nome Atlântida. Deambularia durante milénios, implantando a sua mensagem sempre que encontrasse uma mente favorável.
O dia aproximava-se do fim e Ira moveu-se, finalmente. Pegando no bastão que lhe fora fornecido para o efeito, deu uma forte pancada no solo. E com um último olhar para a cidade condenada, tornou-se invisível e ascendeu ao Olimpo.
Mal partiu, a ilha começou a tremer sem parar, surgiram fendas enormes que o mar se apressou a ocupar e, em minutos, tudo desaparecera como se nunca tivesse existido... exceto o ser criado por Ira e que iria manter viva a sua existência, mas como se de uma lenda se tratasse.


Luísa Lopes

Photo by Will van Wingerden on Unsplash

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