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domingo, 19 de abril de 2020

A insignificante história de um mortal



De mais a mais, Eudósio foi ganhando ares e plumas, ao caminhar. Já partia, depois das rebordosas comezinhas, do alto dos seus cinquenta anos, como se dissesse, parafraseando o herói: “Vou-me embora pra Pasárgada”.
De fato, ninguém mais acreditava em soluções viáveis para o sujeito lunático; perdido na vida. Não aparava um pelo sequer, e não era penitência coisíssima nenhuma, como tantos pensavam; desgrenhados, em suas oscilações involuntárias, e sem rumo certo, formavam, no seu palavreado, “tufas de vida e de sabedoria”. Rebatia, com entusiasmo, qualquer malicioso enxerido, ensinando: “Só se consegue a liberdade com o sincero desprendimento”.
Um típico vagabundo, para Eustáquio, seu irmão, empresário e dono da Casa do Povão, que de povo só ostentava o nome e o formigueiro de gente, no centro da cidade, com o sugestivo slogan: “Vem pechinchar! Essa é do povão!” (quando queria dizer, e pensava, sobremaneira, “Vem se foder”; achando graça, sozinho, no escritório confortável nos fundos dos fundos do galpão). A clientela atulhava, ávida por promoções e afins, e, de tanto alvoroço, criou uma saída estratégica ainda mais nos fundos da loja, para não se deparar e sofrer o revés do azar de se contaminar e ser, um dia, povão. Acreditava, com as suas imensas teorias compiladas da internet, que pobre é uma casta baixíssima determinada por seu deus, pois que, numa sociedade que se preze, há de haver camadas; altos e inferiores; poderosos e ralés; um que manda e outro que obedece; e por aí vai…
Nada disso lhe causava grandes desconfortos. Sentia-se, ao contrário, feliz por contribuir com a divisão, com os estamentos, com o “processo natural das coisas” – e com as graças de seu deus, para, no fim, quiçá, no que trabalhava arduamente, restabelecer a monarquia nesse país.
O bem-aventurado Eudósio, para fugir à regra do endeusamento ao ego do “eu” familiar, alargando ainda mais o desprendimento, entregou-se, de corpo e alma, ao redentor dogma de uma vida de luz, rebatizando-se por Multiverso, porque se sentia, antes de tudo, plural, do mundo e do universo; pronto para receber os ataques e redistribuí-las, as más energias, pelo corpo, dissipando-as na terra, para a sua absorção natural.
Aberto e desavergonhado; detentor de nada; adepto à conexão substância, de si com o plano astral, e só. Abandonou, ainda aproveitando algumas referências cristãs, pais, irmãos e família, para flainar, com os poros abertos, extremamente dilatados, instruídos à recepção; e, para isso, se mudou, sem deixar rastros, para o Sudeste do país, a fim de, precipuamente, apelar à singeleza de Guimarães Rosa, à verdade crua de Aleixo, evaporando-se, então.
Foi tido como uma afronta à família, que já não o aguentava mais. Claro que os maldizeres foram protagonizados pelo irmão, Eustáquio, o autoproclamado “dono da porra toda”. De tão puto, rogou praga à sua vida; não queria supor o nome sujo da família por unzinho qualquer. Repelia, fosse de quem fosse, uma palavra que suscitasse ou sugerisse tal louco chamado Eudósio. Porque aquilo era um desocupado. Porque sempre fora um porcalhão, desmiolado. Porque fazia passar vergonha meio mundo de gente da família, enquanto ele, o requintado – ou requentado – Eustáquio, dava gostos, e muitos gostos, à prestigiada família Rocha Aguiar.
Dona Leocádia caiu enferma gravemente, sem previsão. Mas o que mais preocupava era a lembrança, ainda que com Alzheimer, sempre presente do caçula. Ela não se referia ao filho como aluado; não seguia a toada do resto da família amargurada, e pedia, a todo custo, perdão por ele. “Mas, mamãe, aquele safado nem lembra que a senhora existe! Deixe de pensar nesse canalha!”. E a cansada senhora repetia a questão; pedia que jurassem perdoá-lo. Morreu enquanto dormia, num dia frio, nebuloso. As vizinhas, dona Jandira e dona Maria, diziam, a quem quisesse ouvir, que era obra de sua dor, por despejarem tanto ódio ao filho desviado. As chuvas fortes que se seguiram foram prenúncios e lacunas para as derradeiras súplicas. E dizem, no sertão, que quem morre assim morre desimpedido, livrando-se de uma carga e dando-a a outro – a sina e a graça do dever cumprido.
O instante inspirava cuidado, porque não só Eustáquio, mas boa parte da família atribuía a culpa a Multiverso. Voltou, num reflexo quase imperceptível, inesperadamente, para se aportar no velório da mãe. Pairou uma onda de fulgor incrível, que abrandou o recinto. Com roupas esquisitas, beirando a trapos, parou em frente ao caixão da mãe e deu-lhe um beijo demorado na testa. Uma espécie de novo Big Bang, a explosão; a conexão resplandeceu tudo. Todos se quedaram abismados, confusos. Os irmãos, abestalhados, se prostraram de joelhos; e, mais um pouco, Multiverso desapareceu por entre a multidão, de cerca de oitenta pessoas, que, ainda assim, tentou segui-lo para lhe tocar e, quem sabe, sugar algumas boas energias do novo messias, o redentor tão esperado.
Dias depois do inusitado, relatos espalhafatosos tomavam a capital e davam conta de uma espécie de monge, uma divindade, algo assim, ter operado um contato suprassensorial, fato passado e repassado no programa mais espetaculoso dos domingos, da tevê local. A sorte, a diversão e o ganha-pão do sensacional apresentador era saber se o homem seria um extraterrestre ou um fantasma; e chamou “especialistas” variados e bisonhos, que sabiam de tudo e de nada, para decifrar o sucedido.
Especulou-se; mexeu-se daqui e de acolá, até em rede nacional, o misterioso caso do Redentor de Quixadá. Enquanto que a ele, o Multiverso, assim como antes, nenhum mortal seria capaz de acompanhar. Esvaiu-se no tempo e no espaço, para nunca mais.

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