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quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

O NEONATAL

Vésperas de Natal, 2018.
Esperança que ânimos receberiam
panos quentes, diferenças seriam esquecidas,
certos assuntos delicados evitados.
- Vai ter Natal este ano?
- Vai, na casa da Tia Leninha. Como sempre.
- Vai todo mundo?
- Ah vai, o Natal é mágico para as crianças.
- E os adultos?
- Bico calado. Só vale falar do calor e das rabanadas.
- Hipocrisia.
- Relaxa, não vai ser diferente dos outros anos.
- Verdade. Vamos todos pelas crianças.
- Ah, detalhe: não vai ter amigo oculto.
- Tá certo. O clima está para inimigo declarado.
E chegou a noite. Todos lá. Uns falavam do Palmeiras,
outros do filme do Queen, um grupinho mais separado
comentava Spike Lee. Muitas bobices simpáticas.
Claro, havia um constrangimento no ar.
- Bonita a sua saia.
- É do ano passado.
- Que crise, hein? Mas agora tudo vai melhorar.
Silêncio.
- Esse seu tênis deve ser muito confortável.
- É. Parece que estou descalço.
- Descalço, mas com o rastro da Nike.
Silêncio.
- O que é isso?
- Gin Tonica. Voltou a moda.
- O que são essas bolinhas pretas?
- Zimbro.
- Deus-me-livre, parece cocô de cabrito.
- É de coelho. Afrodisíaco.
Silêncio,
- Você viu o show do Roberto Carlos?
- Sempre igual. Preferi o filme do reloginho da Globo.
- Muito bonito.
- Que produção!
- Sempre me emociono.
- Pena que é da Globo.
Silêncio.
- Pessoal, vamos servir a ceia.
- E os presentes?
- Depois, meu filho, sempre depois.
Tia Leninha, em sua ingenuidade generosa, apareceu da cozinha.
- Queridos, fiz um prato novo.
- Até que enfim! Uma novidade!
Tio Genilson  bateu continência para anfitriã.
Alguns morderam a língua, engoliram o prosecco a seco, outros
repetiram o gesto. Mas todos rodearam a mesa.
- Ora, vejam!
- Arroz de lula!
À primeira piadinha, seguiu-se um respostão, logo depois
a réplica, a tréplica e, claro, o charivari instaurado.
Dedos em riste, perdigotos traçantes, veias saltadas.
Não houve tempo para silêncios respeitosos.
Tia Nancy saiu com fragmentos de rabanada no laquê.
E as crianças só foram receber os presentes em casa,
dias depois.

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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