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segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Memórias de um piano


Sou um piano afetivo. Minha memória sensorial retém tanto melodias doces e arpejos esfuziantes quanto desempenhos trôpegos e experiências acidentadas. Conheço bem a minha senhora e sou fiel a ela. Gosto quando suas mãos passarinham sobre o meu teclado, quando ela se atreve a exaurir minhas cordas num exercício de mil ritornelos. Não faço música sozinho. Só emito sons quando bolinado. Posso ir do pp ao FF dentro dum mesmo compasso, manter a pulsação ou vacilar no tempo, mas sempre conforme as oscilações que ela imprime à vida dela, à minha vida, à nossa.

Aprendi a amar essa criatura que geralmente não me dá a atenção que mereço, mas que de repente aparece para me descobrir e estimular sorrisos em meus incisivos de marfim. Somos unidos desde qualquer antes e para qualquer sempre. Sou-lhe instrumento, sim, mas tenho também o meu poder como piano de estimação: é diante de mim que amiúde ela se prostra.

Estamos juntos há um tempo considerável. Ela ainda era menina de 13 para 14 anos quando me plantaram na sala do sobrado. Fui um presente dado pelo pai e pela mãe dela, adquirido num período instável, de turbulências financeiras. Oferenda singular e extravagante. Ela se surpreendeu quando me viu lá no canto, madeira lustrosa, porte imponente de Fritz Dobbert, todinho pra ela, todinho dela. “E agora? Vou ter de estudar de verdade?” — pensou. “Que lindo. Será que eu mereço?” — disse.

De lá pra cá, ela já deu uma boa melhorada na técnica e interpretação, mas nunca chegou ao virtuosismo que almejei. Vez ou outra consegue tirar um som bonito num estudo de Chopin, mas logo engasga na escala descendente da mão esquerda. Não venceu a dificuldade das oitavas nem dos acordes cheios. Mistura o canto com o acompanhamento. A postura das mãos ainda não é favorável. Titubeia na dinâmica e nunca chega ao andamento exigido. Apresenta músicas com sujeirinhas que não se limpam. E o pior: não faz nada de ouvido, não compõe nada, não reproduz nem MPB, toca sempre apoiada na bengala da partitura. Tem até um bom repertório, mas com capacidade de memorização nula, coitada.

Há pianos que formam estrelas. (Vocês devem ter visto o vídeo do Elton John e seu primeiro piano — https://www.youtube.com/watch…. Emocionante.) Eu não. Sou piano modesto, de pianista meia-boca. Teimosa e apaixonada, no entanto medíocre. Mas já me conformei. Eu simplesmente obedeço, reagindo com sons de zelo e cumplicidade. Um piano escravo, feito justamente para a pianista a quem fui consagrado.

Sou um piano de querenças e sempre me emociono junto com ela. Aceito as condições dessa mulher que me toca e que hoje faz 45 anos. Ela me leva aonde vai. Meu destino é ir com ela, estar com ela. Já passei por quatro mudanças e, ao longo do tempo, sofri avarias físicas e mesmo psicológicas. Um piano também envelhece, sabe? E se reconhece menos atlético e mais sujeito ao adoecimento. A afinação não está durando muito. O clima de Brasília me faz cada vez menos bem. Estou precisando de um novo jogo de cravelhas e conserto nos pedais. A cachorrinha nova, xodó da casa, agora deu de querer roer meus pés.

Também lamento alguns deslizes dela. Não a vi de noiva, por exemplo. Eu sonhava com o buquê sobre a minha caixa, e ela tocando a Marcha Nupcial com o vestido branco e chapéu charmosinho. Acho que o noivo também queria isso. Mas ela nos decepcionou.

Quando ela largou a solteirice, tive de acompanhá-la pro novo lar. Soube que os pais dela se queixaram do silêncio causado pela minha falta. Meu lugar ficou intocável por muito tempo, curtindo o vazio da ausência, até eles se acostumarem.

Conheço demais essa mulher. Para cada situação, ela vem com um toque diferente. Toda alegria e toda dor interferem na música dela e nos transformam. Acompanhei suas primeiras desventuras amorosas, os estudos pré-apresentações, as conquistas acadêmicas e profissionais, tive saudade quando viajou e demorou a voltar, percebi sua expressão pungente nos momentos de doenças e mortes na família, acompanhei sua mudança hormonal durante cada gravidez e cheguei a sentir as primeiras contrações uterinas. Ela adorava tocar de barrigão quase explodindo. Admirei quando, por tanto tempo, ela se fez alimento para as filhas. Também estive solidário quando dos sangramentos indesejados, entre outros desmanches de sonhos. Estive pertinho dela quando do câncer de tireoide e quando dos exames mais chatos. Estarei presente também na menopausa e na aposentadoria dela. (Quem sabe neste período sobre mais tempo para ela estudar?)

Respeito seu silêncio quando me evita, mas sempre torcendo para que volte logo a percorrer meu teclado alvinegro. Vejo sua felicidade quando ensaia e toca com as filhas, quando faz dueto com o irmão, quando improvisa um louvor a Deus, quando arrisca uma canção declaração de amor para o marido, quando interpreta Chiquinha Gonzaga, quando reúne os amigos para um sarau (e treme sempre, receosa de errar toda nota). Sei quando ama uma música e quando odeia uma música. Sei quando está me tocando por prazer e quando está repetindo um exercício de técnica por obrigação. Nunca será uma instrumentista profissional, mas, que maravilha, é amadora!

De vez em quando ela lê em voz alta os poemas e crônicas que escreve para mim. Apareço como personagem importante na seleta dela. Desta vez, o autor do texto homenagem sou eu. A convivência com ela me tornou este piano metido a escritor. E toda palavra aqui é feito abraço, é feito canção, é feito parabém.

Enquanto essa mulher madurece, vamos juntos e felizes, nos sensibilizando mutuamente. Enquanto ela se curva aos meus encantos, a música da vida vale a pena.

Piano da Maria Amélia Elói

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