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terça-feira, 20 de novembro de 2018

O descasamento de Mirna e Raul

- Já deu.
- Já deu.
Não houve DR, nem louças quebradas. A indiferença decidiu.
22 anos de casados. Nenhum filho. Nenhum projeto comum.
Nenhum grupo de amigos assíduos. Nenhum cachorro.
Nenhum um gato. Nenhum hamster. Nem família tinham mais.
Todos os parentes bem distantes. Ou já falecidos.
- Já deu.
- Já deu.
A conclusão, pelo menos, foi a dois. De resto, nada de
afinidades. Ele, futebol, ela, paciência no celular.
Ele, exatas, ela, humanas. Ele, rabada com polenta,
ela, japa. Ele, pelada, ela, pilates.
- Já deu.
- Já deu.
O sexo era bissexto. Porém mecânico. Ele, ejaculação precoce.
Nem Boston Medical Group daria jeito. Ela, frigidez absoluta.
Ele, rápido para acabar a canseira. Ela, olhos abertos, contando
insetos mortos no lustre.
- Já deu.
- Já deu.
Não se dependiam financeiramente. O divórcio seria amigável.
Nenhum bem, nenhum mal. Tudo se arrastava para um fim sem graça.
Até que ele teve uma ideia.
- Uma festa!
- Uma festa?
- Sim! Convidaremos os padrinhos de 22 anos atrás, procuramos
um juiz para homologar o divórcio.
- Nem sabemos mais desse amigos.
- A gente acha. Lembro que eles adoravam uma boca livre.
Champanhe!
- Isso! Champanhe! Um brinde aos ex-casais civilizados.
Foram ao mesmo advogado de família.
- Vocês têm certeza?
- Toda certeza.
- Nenhuma dúvida.
Acharam os amigos nas redes sociais. Prepararam um convite informal.
“Mirna e Raul convidam para a cerimônia íntima de seu divórcio.
Sem tristeza, decisão madura, que queremos compartilhar com raros amigos”
- Que mau gosto.
- Ficaram malucos.
- Depois de 22 anos?
- Tem traição aí no meio.
Enganaram-se os amigos de outrora. Não havia traição. Apenas desgaste
natural das relações sem propósito que não atingem o sublime estágio
do amor companheiro. Nem briga por apertar errado a pasta de dente houve.
Nem por toalha jogada na cama. Nem por sutiã pendurado na maçaneta.
Estavam decididos e desejavam comemorar.
Dia da festa. No apartamento em Ipanema mesmo. Vista para Lagoa,
que entardecia como o amor deles. Os quatro casais foram chegando.
Eram recebidos com uma taça de champanhe na mão, sorrisos desenxabidos
e uma estranheza no ar. Não tocaram nos assuntos motivadores.
- Gente, obrigado pelos presentes!
- Que surpresa!
- É para cada um de vocês economizarem essas coisas chatas de casa nova
de solteiro.
- Um chá de panela às avessas.
Todos riram. O champanhe já fazia efeito. Mas houve um momento de silêncio.
- Senhoras e senhores, estou aqui de modo pouco usual para homologar uma
decisão menos usual ainda.
Todos riram mais alto.
-  Mas como Juiz de Vara de Família, o ritual me obriga a uma pergunta de
praxe: Mirna Cruz Madeira, você está consciente da decisão de se divorciar
amigavelmente de Raul Batista Madeira?
- Siiim!!!
- Raul Batista Madeira, você está consciente da decisão de se divorciar
amigavelmente de Mirna Cruz Madeira?
- Siiim!!
Até na enfática afirmação estavam afinados.
- A partir de agora, Mirna voltará a seu nome de origem: Mirna Melo Cruz.
De acordo?
- Siim.
- Por favor, testemunhas assinem o documento.
Após o ritual, foi servido o jantar. Roast beef com batata rosti,
saladas diversas, bobó de camarão. O champanhe deu lugar a infinitos
Bordeaux e Chardonnay. De sobremesa, frutas, mousse de chocolate amargo
e rocambole cremoso de morango. Não houve bolo, nem distribuição de
bem casados. Seria despautério demais.
Depois de muita dança, lá pelas tantas, todos se despediram. Padrinhos, madrinhas,
testemunhas e recém divorciados. Foram para suas casas trocando as pernas.
Mirna e Raul partiram cada um no seu Uber, cada um para um apart hotel próprio,
já arrumados para a nova vida.
Dois anos depois.
Claudio e Glória, duas das testemunhas daquela festa estranha, porém aninada,
avistaram ao longe Mirna e Raul saindo do cinema. De mãos dadas, sorridentes,
feições de pombinhos. Já abraçados, foram vistos entrando num bistrô no mesmo
shopping, começando a brindar com champanhe, trocando beijos ardentes e carícias
um tanto impróprias para o local.
- Você está vendo, Glorinha?
- Palhaçada. Quero as cafeteiras que comprei para cada um de volta.
- Relaxa, querida. Vai ver que a separação foi um fracasso.
E saíram os dois de fininho, Claudio e Glória, para não serem vistos por
Mirna e Raul.
Certos de que só o amor tem suas inexplicações.
E que não se fazem mais descasamentos como antigamente.




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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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