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sábado, 20 de agosto de 2016

O QUE O CORAÇÃO MESTRE MANDAR

Acorda, se apruma, se banha, se apronta, deixa a vaidade pra lá.
Veste a melhor roupinha, engraxa o sapato, dá um jeito no cabelo e vai.
Faz o que seu coração mestre mandar. Estufa o peito, olha a vida de frente,
não espia de lado, ninguém vai notar. Não esconde a dor, escancara o destemor,
empina esse amor e sai como entrou. A vida é um jornal do dia seguinte.

Arivaldo Rolim Bustamante, professor doutor em pediatria,
esgarçou o mais que pode seu desejo atormentado de transgredir, mas enfim,
rendeu-se à sedução do Hot Night. Já passava das 20 horas,
quando o pianista Rui Suave dedilhou as primeiras notas de um samba-canção,
sem antes acender um recorrente Caporal Amarelinho, que dava ao ambiente um ar esfumaçado,
sem crime iminente, sem detetives vestidos de capa e chapéu de Humphrey Bogart.
O Dr. Arivaldo por precaução entrou vestido assim, mesmo sem chuva lá fora.
Mais parecia egresso das telas dos cinemas da moda, na tentativa de não ser
reconhecido por um ou outro aluno da Escola de Medicina, jovens bem-nascidos de
testosterona em riste, noivos durante o dia e fornicadores à noite,
como ditavam as boas maneiras vigentes. Dr. Bustamante permaneceu pouco tempo
incógnito e misterioso no Hot Night, despertando atenção de moçoilas e do garçom discreto.

- Uísque, senhor?
- Copo longo com muito gelo, por favor.

E mais não disse. Ficou enrolando dedo no copo, bebericando vez ou outra,
renovando as doses e esquivando-se das oferecidas que ameaçavam sentar à sua mesa solitária.
Algumas mais assanhadas faziam menção de se esfregar à sua coxa vestida de linho escuro
e enrolar os braços na sua capa Burberry, para sentir no toque a qualidade do freguês.

- Por favor, minha filha, agora não.

Dr. Bustamante, apesar do semblante carrancudo por fora, exultava por dentro.
Nunca imaginou que tivesse tomado coragem para conhecer o bas fond,
desejo enrustido de anos e anos de austeridade e respeito à família:
a senhora Dirce e suas três filhas adolescentes, que naquela noite estranharam o
adiantado da hora e a cadeira vazia na mesa do jantar.  A mãe balançou um sininho
e ordenou à copeira Benedita que servisse a sopa, mesmo com a ausência do patriarca.

- Seu pai deve ter tido emergências no hospital - comentou com as filhas silenciosas.

À chegada do pote de ambrosia à mesa, ouviu-se um rude abrir de porta.
Dr. Bustamante surgiu à sala cambaleante e desgrenhado, capa na mão e chapéu torto,
escorando-se no espaldar da cadeira. E passou o recado com a língua pastosa
e um sorriso jamais visto.

- Já jantei. Boa noite.

A mulher e as donzelas se entreolharam. A senhora Dirce fez um comentário,
que de tão sincero, saiu em voz alta.

- Nunca vi o pai de vocês assim.
- Nem eu! 

Tal grito sarcástico veio do alto da escada, quando o Dr. Bustamante já estaria
alcançando seus aposentos. Todas se levantaram da mesa e entregaram-se aos seus afazeres
– leitura, bordado, piano ou ouvidos na Rádio Nacional, preferindo ignorar a circunstância.
Benedita recolheu o prato vazio do patrão e, de rabo de olho, observou a expressão de
contida contrariedade da Senhora Dirce. Não fossem os roncos inusitados do professor doutor,
a noite teria transcorrido como outra qualquer e quando o dia amanheceu a
rotina da casa se restabeleceu.

- Bom dia, queridas. Não posso me demorar no desjejum.  O risco de uma epidemia está alvoroçando o hospital e à tarde meu consultório estará cheio de criança tossindo. 
Com licença.

A sua segunda entrada no Hot Night, com o mesmo disfarce de Bogart, aconteceu
mais cedo que o dia anterior. Estava ansioso em voltar àquele lugar,
que lhe teria devolvido a alegria de viver. Dessa vez algumas doses de uísque
extras lhe encorajavam a uma experiência mais audaz.

- Pode sentar, minha filha. E me dê a honra de aceitar um drink.

Contrariando sua cartilha, a moça que se ofereceu era uma mulata franzina,
mãos longas e dedos finos, que terminavam em unhas de esmalte da cor do batom dos lábios carnudos.
Havia algo que descia da cabeça, cujo efeito do uísque sugeria madeixas louras, contrastando com
o achocolatado da sua pele. Dr. Bustamante agradou-se.

- Diga o seu nome, minha filha.
- Matilda, sim senhor.
- Por favor, sem o senhor. Me chame de Ari.
- Ari? De Ari Barroso?
- Exato, Matilda. Ari de Ari Barroso, minha mulata isoneira.

Matilda abriu um sorriso largo, de dentes alvos como chantilly num café forte.
A cada dose de uísque esquentava o encontro. Se Dr. Bustamante se revelava um galanteador aventureiro,
Matilda se surpreendia com um homem de meia idade encantador, algo raro naquele fim de mundo esfumaçado.
Os passos seguintes, já tronchos pelo descontrole dos pés, os levaram de taxi a um hotel de baixa tarifa:
jogaram-se na cama como não houvesse passado ou futuro, só a eternidade daquele momento regia o movimento
dos corpos, descobrindo-se a si próprios, banhando-se em afeto, prazer e sinceridade, e deixando-se
limpar das impurezas das regras e dos preconceitos.  Claro que naquela noite Dr. Bustamante extrapolou.

- Estamos debelando o risco de uma epidemia muito severa, Dirce. 
Por isso passei a noite no hospital. Hoje prometo me dedicar à família.

A senhora Dirce engoliu a desculpa, mas como boa esposa, mandou Benedita providenciar
galinha assada com arroz de forno para que o marido esquecesse as agruras do ofício.
Os momentos foram simpáticos. As filhas recitaram poemas em francês, a mais velha arriscou
Villa Lobos ao piano e a mulher serviu o chá das 5 com biscoitos, como se celebrassem o
raro encontro familiar em pleno dia útil. Após a sopa da noite, o casal se dirigiu aos aposentos.
Dirce vestiu camisola de seda, perfumou-se para o amor, mas deparou-se com o marido na cama,
dormindo de boca aberta, de robe, pantufas e uma expressão exausta de noite anterior mal dormida.
Como sempre, suspirou fundo e conformou-se. Descalçou o marido, apagou o abajur e tentou dormir.
Os tempos foram passando, o risco de epidemia se extinguiu, mas a cada semana as desculpas
do Dr. Bustamante renasciam. Apendicite supurada. Congresso de tuberculose infantil em Barbacena.
Incidência crescente de sarampo. Surto de catapora no consultório. Acompanhamento de pesquisa na Fiocruz. Paraninfo de Formatura. Seminário de poliomielite em São Paulo.
Pelo menos, um entardecer semanal no Hot Night era segredo sagrado. Já não era um estranho.

- Mr. Bogart, seu uísque de sempre. Matilda deve estar chegando.

E depois de algumas doses, o taxi já estava esperando religiosamente na porta em
direção ao ninho religiosamente profano.
Uma tarde quase noite, Arivaldo surpreendeu: chegou mais cedo no casarão da Tijuca.

- Não estou me sentindo bem. Vou me recolher. Me chame na hora da sopa, minha filha.

A senhora Dirce estranhou e deixou de lado a esperança de vestir a camisola de seda.
Quando a mesa do jantar estava posta, as meninas em seus lugares ouviram um grito
comprido que ecoou da escada para a toda a casa, reverberando na vizinhança e arredores.
Subiram as três emboladas e na porta do banheiro, viram a mãe sentada no chão,
com a cabeça do pai no colo, alternando tapinhas nas bochechas, afagos pela a testa
e cobrindo o rosto inerte do marido com beijos e lágrimas torrenciais.

- Nada pude fazer. Foi fulminante.

A senhora Dirce repetia o mantra a todos que acorreram ao velório no Salão Nobre
da Escola de Medicina. As pompas fúnebres foram concorridas.  Amigos, vizinhos,
colegas, alunos, pais e mães de clientes, parentada próxima e longínqua, todos surpreendidos
por um anúncio fúnebre no jornal.  A viúva e as três meninas não arredaram pé das bordas da urna.
Revezam-se entre acariciar a testa do defunto e espantar drosophilas que rodeavam as narinas tampadas,
quando mal perceberam entrar um mulato isoneiro, franzino, mãos longas, dedos finos e carapinha
lustrosa de tanto esticada, lábios carnudos mordidos de emoção por dentes alvos como chantilly
num café forte. Vestia terno escuro - sua melhor roupinha -, gravata preta e fita de luto na lapela,
sapato bicolor que, de certo, ganhara graxa especial para a ocasião. Deixara pela dor a barba por escanhoar,
tinha olhos vermelhos cansados de tanto chorar.  Postou-se no pé do caixão.  Segurava três cravos,
que após um humilde sinal da cruz, foram colocados sobre as mãos do falecido.
Ninguém disse nada.  Foi o forasteiro examinado por todos, da cabeça aos pés, com estranheza e a
raiva de ter um negrinho no velório do Professor Doutor.  Também não se dirigiu a ninguém o desconhecido.
Nem um abraço à viúva, nem um afago nas meninas inconsoláveis. Assim como chegou, saiu.
Só que de costas, afastando-se sem tirar os olhos do rosto céreo de Ari, como se prolongasse
a despedida daquele que tinha lhe acariciado o coração e iluminado a vida nos últimos bons tempos.
Deu meia volta e seguiu. Fez o que seu coração mestre mandou.                                


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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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