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sábado, 26 de novembro de 2016

O quarenta e dois


André Cerino - Imaculada - 1999 - andrecerino.com.br


Ainda bem que cheguei ao quarenta e dois. Melhor ainda ter esta chance de me despedir dele. Impressão de que arrasta o chinelo, ora baila tão presto, dono do salão. Portador de angústia que não remata, mas também de delícia repleta de gozo perene. O 42 é paradoxo todo, seis vezes sete estranhezas custosas amontoadas. Será por que dobro da maioridade — não civil, mas humana?

O raso 40 não me deu tanto trabalho. O 2 a mais, no entanto, tem se mostrado ardido desde o começo, picante nos sentidos mais positivos e nos mais hostis: pimenta de quentura, ousadia e coragem; por outro lado — talvez principalmente — veneno de acidez dolorenta e pinicante. Bingo! Ele tem uma magia intrínseca que provoca todo tipo de irrequietação.

O 42 que nunca acaba é um verdadeiro spoiler. Inconveniente, age desferindo cruas verdades, caçambas de gelo no lombo. O bicho é mesmo um quebra-gozo, lesa-esperança de uma figa. “Suas limitações físicas ganharam força e estão tomando o poder” — ele se precipita, precoce zombeteiro, muito antes da chegada do 50, muito antes de eu querer assistir ao fim do filme. E me põe num difícil dilema, algo que afeta intimamente a mulher que sou. (Sim, estou falando do tempo estreitado da idade fértil, de condições biológicas menos favoráveis à reprodução, de sabotagens ao plano de gravidez. Por que acontece de subsistir tão latente o desejo, a necessidade de gerar mais um filho? Por que essa teimosia de não querer parar de parir, contrariando o bom senso? Dúvida-atoleiro sem solução. Assim, o 42 magoa fundo, quando permite que o coração ávido por vida more num corpo apático, beirando a esterilidade.)

Mencionei uma ardência difícil do 42, né? Agora cito aprendizado favorável, comprovado na empiria: tireoide e vesícula são completamente dispensáveis. A falta delas não mata nem aleija. Outro deleite importante: no 4 ponto 2, nasce uma capacidade maior de amar e de demonstrar amor. Sim, ele ajuda nos abraços verdadeiros, facilita o acolhimento, o encontro, faz gamar nas criaturas. Permite ainda que se fortaleça a fé no Criador e que se reconheça o brilho dos milagres, até das graças mais pequetitas. O 42 me tornou mais sincera, mais sedenta de sentir (de me sentir toda e de sentir o outro, de tomar parte, sentar com o outro para ouvi-lo, respeitá-lo, compreendê-lo, de me responsabilizar pelo coletivo). Dependência? Autonomia? Engajamento? Medo do exílio? Busca da salvação?

Tudo isso ecoa no fluxo da escrita, essa comadre inseparável linguaruda. Os personagens assumem um dever de empoderamento, a narrativa amadura, o prazer de criar se acentua, mais consciente do direito de confidenciar e de levar a refletir sobre toda sorte de bênção e de desdita. O 42 tem me trazido apetite voraz e bons recursos de resiliência. Entidade complexa, esse meu chegado que já se despede. Agora que venha o 43, este mistério de linhas próprias, e que me tempere ainda mais robusta e inacabada, com fome do 44.  


Maria Amélia Elói

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