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terça-feira, 20 de dezembro de 2016

O cego de Caxambu

Sujeito gentil o meu avô.  Diziam que escolhia as palavras e premeditava gestos,
apenas para não magoar involuntariamente alguém. Tenho ótimas lembranças de sua
voz pausada, sua elegância esguia, suas mãos conciliadoras.

Por algumas vezes, passamos férias familiares em Caxambu, quando veranear numa
estação de águas era como tomar sol na pérgula do Copacabana Palace, só para
espiar uma ou outra starlet de Hollywood dentro de um maiô atrevido. O glamour
dos tempos vencidos transbordava.

O hotel em Caxambu era muito chique. Foi o palácio onde a Princesa Isabel se
hospedava, quando precisava tirar férias do Conde D’Eu, suponho, ou revitalizar
sua distante juventude nas fontes milagrosas do Parque das Águas.

Havia regras pitorescas no hotel. Só se jantava de terno e gravata e as damas
cuidavam de não repetir o mesmo vestido do jantar anterior, embora joias pudessem
ser alternadas noite sim, noite não.  Não que houvesse alguém para fiscalizar
os figurinos na porta, mas a simples transgressão do vestuário era motivo de
olhares reprovadores e cochichos maldosos entre os hóspedes.

Assim como o figurino das distintas senhoras, o cardápio ousava na variedade
obrigatória. Foi nessa época em que eu, menino de 11 anos com pescoço envolto
por uma gravatinha borboleta, conheci o purê de batata doce com iscas peito de pato,
a sopa de brócolis pedaçuda, o arroz com amêndoas e a truta amanteigada, couves de
Bruxelas cortejando um assado de vitela, o sorvete de caramelo e o Ile Flottante,
segundo meu avô, nome metido a besta dos ovos nevados, um pudim de claras batidas
que flutua sobre um denso creme de baunilha salpicado de raspinhas de casca de limão.

Foi nessa época também em que cai de amores pelo pecado da gula – ou da luxúria
gastronômica – e dele nunca mais me desgrudei.  Até hoje aprecio o prazer do degustar
como um orgasmo permitido em público.

O hotel hospedava Don Pablo D’Alvear, um cego ibérico, bem gordo e careca,
cuja gravata não descia além do umbigo e os botões do paletó surrado jamais
encontravam suas casas. Era uma figura fora do contexto de distinção e finura
que o hotel exalava. Mas não era um figurante. Todas as quartas feiras, assim
que as portas do salão do jantar se fechavam, abria-se a sala de música, onde
alguns dos recém-jantados hóspedes bebericavam digestivos em torno de um
piano de cauda. Pois ao lado desse piano, Don Pablo D’Alvear se metia a cantar ópera.

Não que varasse a noite com árias incompreensíveis, mas para um menino de 11 anos,
três minutos de cantoria era o bastante para puxar meu avô para o salão de bilhar,
onde menores só poderiam entrar acompanhado de seus responsáveis.  E mesmo fascinado
pelo bailar das bolas coloridas sobre o feltro verde, era perseguido ao longe pelas
extensões vocais insuportáveis do cego.

Certa noite, quando esperávamos no hall principal o abrir do salão do jantar,
do alto de uma escadaria larga de passadeira vermelha presa ao chão por frisos dourados
– a Princesa Isabel deve ter rolado a escada, pensei, por isso o tapete com garras
de segurança – surge o cego com sua bengala nervosa.
Meu avô, o gentil cavalheiro, tratou de subir os degraus e dando o braço a Don Pablo
descobriu que de espanhol o cego não tinha nada.

- Me larga! Conheço essa escada há mais de 30 anos!

Meu avô desceu a escadaria balançando a cabeça com um sorriso amarelo.
Nós e alguns hóspedes ao redor ficamos constrangidos com a cena, e mesmo
torcendo para que Don Pablo se estabacasse, acabei por admirar a desenvoltura
impressionante do cego em lidar com degraus. Mas um pensamento não me poupou:
desce escada melhor do que canta o desgraçado.

Outro ritual sagrado em Caxambu era caminhar até o Parque das Águas depois
do café da manhã, sempre com meu inseparável companheiro avô. Numa dessas
manhãs frescas e azuladas de Minas, vimos o portão da garagem de uma casa
aberto para calçada, e não para dentro da casa, como reza o bom senso.
Meu avô comentou a burrice de quem tinha projetado aquela ameaça ao pedestre,
mas mal prosseguimos a prosa sobre o absurdo, vimos Don Pablo D’Alvear aparecer
na esquina e caminhar com sua bengala nervosa em direção ao portão.

Meu avô parou e segurou meu braço. Apertou minha mão e atravessamos a rua.
E ficamos de camarote prontos a assistir o desastre iminente.
E lá veio o cego farejando com a bengala o seu suposto tranquilo e desenvolto caminhar.
Não deu outra.

Schcalablouft.

E foi Don Pablo ao chão. Primeiro caiu de costas, perdendo óculos e bengala.
E depois de soltar um urro de opereta bufa, virou-se de bruços tentando se levantar.
Mas a barriga não deixou. Bateu pernas e braços como se nadasse no seco.

Pela primeira vez, vi meu avô soltar uma gargalhada estrondosa. Ria e segurava
as entranhas como um ordinário de botequim. E ainda me bateu nas costas,
com uma alegria descomunal.

- Olha lá! Parece um mata borrão!

Saudade do meu avô. O cavalheiro que descobri um ser humano como outro qualquer.

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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