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quarta-feira, 3 de junho de 2015

EM PARÁBOLA

EM PARÁBOLA

Voar, como o vento, engolindo distâncias, esvanescendo-se em neblina, liquefazendo-se no vazio. Voar, como num sonho. Descortinar mundos além do olhar rasteiro, de cobra esfolando o ventre no solo pedregoso. (Deserto, este.) Voar sonhando-se gigante, um ser-por-sobre. Não-mais-nunca o pequeno Zeca: homem-menino-sempre. Homenino. Ah, não!
            Parcial, o voo. Um tiro de canhão a torná-lo projétil. Projeto limitado de liberdade. O estampido seco, o soco nos pés pequeninos, o corpo diminuto a cortar o espaço. Como adaga, a água. Em parábola. A pólvora. O cheiro de. O capacete ricocheteia no alvo. O saco-de-batata frouxo despenca nas malhas.
A plateia vibra.

            Liberdade frágil. Fogo-fátuo. O voo, assim, forçado. Correntes invisíveis. Homenino de alma presa ao limite do corpo. Tão-sem. Ele, escravizado ao mister. Desde sempre. Sem direito de. Sem ninguém por.
O corpo anseia outro corpo da alma que a alma beijou.
Lis, a flor de. Bailarina infeliz. Ilha de desejos em mar de tormenta. Do dono, filha. Armadilha.
(Ela, presa aos laços do sangue que pelas veias. Escorre pelas pernas. Pelo sexo, para dentro. Entropia carnal. Amiúde, a contragosto.)
Olhares fugazes, roçares furtivos. Um beijo, se... O despertar rompe. O real é pedra no sonhar.
            Empreender fuga. Reinventar a vida. Um mundo-em-que-ambos-em-si. Homenino-bala, moçamenina-bailarina.
            Um aéreo plano. Asas de alumínio ocultas sob. Abertas, projetam o voo (im)possível.

O espetáculo. Ela sob as estrelas, perto da ponte. Calada, ao frio. Ele se prepara. Mais pólvora, nova mira. O silêncio esmaga. Calafrio. A ânsia secreta tempestades no estômago. Sim e não, uma questão de. Dúvida atroz. Por um fio.
O estampido, enfim. Homenino-bala rasga a prisão da lona. Corisco risca o céu pálido de lua à míngua. Em parábola.
Asas, asinhas, pelamordedeus!
Bate-bate-bate. Debate-se em vão. No vão. O saco-de-batata frouxo.
O real-pedra explode o sonho na cabeça miúda. Filete de rio rubro, verte-se. A relva desveste o verde.
Ela corre. Tropeça, cai. Engole-se na dor, um grito oco. Abraça o corpo já-sem. Vazio compartilhado.
Ah, não!
Lis, meu amor, plante uma flor no canhão que me cuspiu.
            No circo, a plateia vaia.

            O vulto disforme cresce atrás de. O corpo que feriu a semente de si. No breu das noites sem lua. No trailer. Não às súplicas pelo não. Correntes invisíveis, nas mãos grossas. Se um pai-eterno lhe aprouvesse. Se o Pai-nosso balbuciado. Se pai assim o fosse. Pai.
            Num ímpeto, o furor. Afasta-se do corpo inerte, jamais seu. Enquanto o outro, resfolegante. O mesmo que a tivera. Frente a frente já. Submissa, não mais. De uma das mãos, um brilho escapa. Com a outra rasga a branca veste. Seios vivos: liberdade que não. O corpo pálido sob a lua-irmã. Seu, nunca mais. O outro se acerca. Tire as mãos, porco imundo. Um passo mais. Se mais um, te mato. Vacila. Sou eu, seu pai. Olhares faíscam. Pai?! Meu pai? Quisera fosse. Um animal insano. E só. Pai-nosso-que-estais-no-céu. Um verme asqueroso. Pai?! Não sabe o que significa ser. Santificado-seja-o-vosso-nome. Nem jamais do coirmão que me rasga as entranhas. Então você... Num átimo. O abismo do corpo, outro, engole o brilho que antes.
Agora-na-hora-da-nossa-morte. Amém.

Trôpega, até a ponte. A água recria a lua pálida. As pedras, leito macio (em espera). O corpo translúcido. Voo suave. Em parábola.

Sob a lona, ao não tão longe, traquinices dos palhaços.
A plateia delira.    

Edelson Nagues


Do livro Respeitável público: histórias de circo e outras tragédias (com Cinthia Kriemler, Henriette Effenberger, José Ronaldo Siqueira, Tatiana Alves e Zulmar Lopes – Editora Penalux).

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Edelson Nagues
(nome literário de EDELSON RODRIGUES NASCIMENTO) é natural de Rondonópolis/MT e radicado em Brasília/DF. Estudou Direito e Filosofia, com pós-graduação em Língua Portuguesa. É poeta, escritor, revisor de textos e servidor público. Na década de 1980 e início da década seguinte, em seu estado de origem, atuou na área musical, como vocalista e principal letrista do Grupo Reciclagem, tendo participado de vários festivais universitários e de festivais regionais e nacionais da Caixa Econômica Federal, obtendo diversas premiações, inclusive como intérprete e letrista. Na época, funcionário da CEF, atuava como representante do então recém-criado Conjunto Cultural (hoje denominado Caixa Cultural) em Mato Grosso. Premiado e/ou selecionado para coletâneas em vários concursos literários, entre os quais se destacam: Concurso Nacional de Poesia “Adilson Reis dos Santos” (2012, Ponta Grossa/PR), XXXIII Concurso “Fellipe d’Oliveira” (2011, Santa Maria/RS), Prêmio Prefeitura de Niterói (2011), XXI Concurso Nacional de Contos “José Cândido de Carvalho” e XII FestiCampos de Poesia Falada (ambos em 2011, Campos dos Goytacazes/RJ), Concurso Novo Milênio de Literatura (Vila Velha/ES, 2010), IV Concurso Nacional de Contos do SESC-Amazonas (2010, Manaus/AM), VI Desafio dos Escritores (Brasília/DF, 2010), XL Concurso Literário “Escriba” (Piracicaba/SP, 2009). É autor dos livros Humanos (coletânea de contos premiados) e Águas de Clausura (de poesia, vencedor do X Prêmio Livraria Asabeça), ambos publicados pela Scortecci Editora. É membro correspondente da Academia Cachoeirense de Letras (de Cachoeiro de Itapemirim/ES) e mantém (ou tenta manter) o blog pessoal www.senaoescrevodoi.blogspot.com.
todo dia 03


3 comentários:

Tive a sensação de ver um filme em que as cenas se paralisam a cada segundo; a trajetória interrompida e continuada do tiro voo do corpo, assim, respiração com soluço. Que gratificante experiência!

Fico feliz por vc ter gostado, Marco Aurélio. Vc fez uma boa leitura do texto, enriquecendo-o. Grande abraço.

Fico feliz por vc ter gostado, Marco Aurélio. Vc fez uma boa leitura do texto, enriquecendo-o. Grande abraço.

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