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segunda-feira, 22 de junho de 2015

Só uma fase

Há meses que pelo menos duas vezes na semana Laurinha dava baile na madrugada. Em susto, levantavam mãe, pai, irmãos menores, cachorro latia na rua, cocota latia para o cachorro, luzes de toda a casa acesas. Não parava ninguém dormindo. O que foi, Laurinha? Sempre a primeira a chegar, a mãe tinha com a menina uma paciência eterna. É ele, mãe. O homem, aquele homem sem olhos, ele veio aqui de novo, mãezinha, não deixa ele me pegar, não. Não tem homem nenhum, filha. Isso que tu tens as vezes é pesadelo. Sonho ruim. É só imaginação. Não é real. Quer ver? Olha aqui com a mãe embaixo da cama, ó. Não tem nada, viu. Só uma meia suja tua, já falei que aí não é lugar. Volta a dormir, tá? Vou ficar contigo até pegares no sono de novo, canta com a mãe: mãezinha do céu, eu não sei rezar, só sei dizer... E assim foi até ultrapassar o limite do suportável.

O pai não podia mais com aquela novela. Quando a Laura atravessava a noite dormindo, ele é quem acordava por qualquer ruído, sobressaltado, achando que era mais uma da guria. Os menores desciam das camas e ficavam observando o chororô da irmã com olhos muito arregalados, consternados da situação. A mãe, incansável. Curava cada surto da filha com uma ninada compreensiva, torcendo para que fosse a última. Leva no médico, benze, manda rezar uma missa para a alma do condenado, dá um cansaço durante o dia que vai dormir direto e reto. Os pais ouviam e tentavam todas as receitas que julgavam não fazer mal a ninguém. Mas a Laurinha se repetia, com algumas variações. Era ele e uma mulher malvada e descabelada. Ele e uns outros com machucados nas pernas. Ele e uma velha corcunda e fedorenta. Mas ele toda vez. Até que decidiram acreditar no pediatra: é só uma fase. Bem típica da infância, isso. Coisa de criança que precisa dividir atenção dos adultos com outras crianças. Vai passar. A senhora siga fazendo do seu jeito, mas não dê tanto ibope para as cenas. Trate naturalmente, mude de assunto. Vai ver como as crises da Laura vão rarear até sumirem por completo.

Os pais seguiram exatamente as recomendações do profissional. Então, algum tempo depois, repararam que a filha já não pedia mais socorro às três da manhã. Nem às três e quinze, nem às cinco e meia, não mais. Todos passaram a viver o sono dos justos, dos trabalhadores, da família amorosa, dos céticos. Menos a Laura, que simplesmente entendeu a regra do jogo. Bastava abrir os olhos, respirar fundo e pensar firme que estava tudo bem, que ninguém sem carne e sem osso poderia fazer-lhe mal dentro ou fora do seu sono. No início doeu, mas com o tempo ela se habituou às companhias noturnas. Tentou dialogar, entender, espantar. Em vão. Chegaram outros, alguns foram embora. O homem, jamais. O pediatra acertou, de certa forma. Era só uma fase. Uma fase na infância, uma na adolescência, uma na maturidade, uma na velhice. E nas últimas linhas da vida até que foi bom. Quando a Laura foi viver no lar de idosos, levada pelos irmãos, velha e louca varrida, não estava só, afinal. Terminou os dias entre as flores do jardim da casa coletiva, cercada de amigos, tão cega quanto o mais antigo deles.

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Andréia Alves Pires
Nasceu em Rio Grande, cidade ao sul do Rio Grande do Sul, é jornalista, mestre em história da literatura e autora do livro de contos De solas e asas. Integra o Coletivo Fita Amarela, colabora semanalmente com contos ao jornal Diário Popular e publica o que escreve, em primeira mão, no blog www.desolaseasas.blogspot.com.
todo dia 22


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