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quarta-feira, 10 de junho de 2015

Estou pensando em desistir de escrever


Henry Alfred Bugalho

Estou pensando em desistir de escrever.

Sei que para muita gente, isto pouco importa; a maioria nem sabe que eu existo tampouco o que escrevo. Não faz diferença alguma. Aliás, poucas coisas fazem realmente diferença.


Assim como muitos, pensei um dia que a era digital nos conduziria a um novo Esclarecimento,
alçando-nos a um patamar nunca visto antes. Com informação e diversidade infinita à nossa disposição, só poderíamos inevitavelmente nos tornar mais esclarecidos.
Doce ilusão! Esta é uma nova idade das trevas, que encontrou no espaço virtual um território livre para que todos possam expressar seu ódio, sua intolerância e, principalmente, sua ignorância.
Todos se odeiam e todos sentem o impulso de vocalizar isto. A cacofonia do ódio.
Não que isto não seja um reflexo da essência da sociedade na qual vivemos. As pessoas também se odeiam do lado de fora da internet; entretanto, muitos teriam vergonha de externalizar pessoalmente as mesmas ideias que propagam on-line. Vergonha e medo, pois não saímos às ruas xingando e hostilizando todos aqueles que pensam diferente de nós. Pelo menos, ainda não...


Sinto que a Arte e a literatura têm pouco espaço neste mundo de intolerância.
Transgressoras em sua natureza, elas não pertencem ao domínio das interdições, não têm voz quando tudo é proibido, quando tudo é potencialmente ofensivo.
É evidente que há a arte subversiva, que floresce justamente porque há a repressão.
Inclusive, penso que é até muito mais fácil e heróico bater-se de frente a um censor estatal opressor. Numa ditadura como a que o Brasil viveu há poucas décadas, sabia-se contra quem e o que lutar; e, de certo modo, também se conhecia as regras implícitas para burlar a censura.
Entretanto, na ditadura do moralismo hipócrita de hoje, na qual qualquer pessoa pode ser uma polícia do politicamente correto, contra quem brandiremos nossas armas? Como contorná-la?


Voltamos assustados nossos olhos para o Oriente Médio e seus jihadistas, sem compreender bem o
que leva alguém a matar ou morrer baseado na leitura equivocada de um livro sagrado, mas também temos dificuldades para constatar que caminhamos nesta mesma direção, dia após outro retornando ao período mais negro e assustador de um Cristianismo que perpetrou horrores inimagináveis.
O problema não está em acreditar em Deus; a tragédia é arrogar-se a primazia da moralidade e dos valores corretos.
Depois disto, tudo é consequência.

O radicalismo religioso é apenas uma das facetas. Hoje, ficar em cima do muro já não é mais uma opção digna. Tudo se polariza. Os extremos estão cada vez mais extremistas. Os movimentos de ação afirmativa, o feminismo, o comunismo, o militarismo e tantos outros "ismos" atracam-se diariamente com qualquer um que se interponha em seu caminho.
Palavras que não podem mais ser usadas. Estereótipos de opressores e oprimidos. Listas negras de livros e autores. Debates intermináveis nos quais todos falam, mas ninguém escuta.
Li recentemente em um blog feminista algumas recomendações sobre como um homem deve conversar com uma feminista e, uma delas, que automaticamente já anula o conceito de "conversar", era "treine a não-opinião", ou seja, cale-se. Quando praticamente tudo que proferimos é basicamente opinião (os gregos tinham uma palavra excelente para isto, "doxa", ou seja, tudo aquilo que aceitamos sem a devida reflexão), isto obriga o interlocutor ao silêncio.
Mesmo quem defende a tolerância e a igualdade acaba caindo na armadilha do discurso e atos intolerantes. Não basta convencer ou redimir o suposto opressor, é preciso aniquilá-lo.

O silêncio...
O tão benéfico silêncio. A verdadeira libertação das oposições e das contradições.
O silêncio que nos une verdadeiramente, quando todos estamos atados pelo nada que tudo devora.
O silêncio, aquilo que prevalece no final.


É uma angústia criar quando cada palavra sua poderá ser escrutinada, examinada com uma lupa à
procura por um alvo de ataque. Se você não faz parte do rebanho, se não fala para um público doutrinado, se você se desvia do caminho, prepare-se para o linchamento público.
A nossa barbárie revela-se justamente neste prazer que temos de ver nossos inimigos queimarem. O vilão tem de pagar no final.
Este espetáculo de horror causa satisfação e reforça nossas posições. O diferente deve ser extirpado e apagado da História.

Entretanto, ao reler tudo que escrevi acima, constato que é justamente por isto que sempre escrevi: para ser a voz dissidente, para expressar o que ninguém gostaria de ouvir, para fugir das normas e romper os tabus e tolas certezas.
Eu sou o inimigo. Eu sou o vilão. Eu sou o diferente.
Por isto, escrevo.
Por isto, devo continuar escrevendo.
Talvez um dia também me queimem em praça pública, mas farei o mundo arder comigo.

Farei o mundo arder comigo.

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4 comentários:

O texto que gostaria de ter escrito. Parabéns, Henry!
Cecilia

Escrevo contos, e, penso em fazer o mesmo. Não tenho dom para escrever ilusões e nem hipocrisias, então, conto com um escasso público.

Como escreveu Victor Hugo, no prefácio a'Os Miseráveis: "enquanto sobre a terra houver ignorância e miséria, livros como este não serão inúteis". É por aí, mas parar é mais difícil. http://www.musarara.com.br/a-arte-de-nao-escrever (Sérgio Sant'Anna)

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