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quarta-feira, 20 de maio de 2015

BODAS DE NEURAS

Há 25 anos faço análise com o mesmo analista. Dizem que não é bom esse tempo todo,
mas faço análise há 25 anos com o mesmo analista para não me deixar manipular por
estes “dizem” que o senso comum nos impõe.

Parece casamento.

Eu sou assíduo cliente de um austríaco de pai italiano, que foi trazido ainda no
colo dos Alpes fronteiriços da Itália para o Brasil, onde cresceu, adolesceu e
virou médico de especialização psicanalítica.

O nome dele é Ralph Bernnelli e duas vezes por semana tiro os sapatos e me jogo
nos almofadões do seu divã. Um analista de botequim parceiro de chope e bolinho
de bacalhau disse que chafurdar nos almofadões de um analista é nadar no líquido
amniótico da mãe.

Como ele não passa de um palpiteiro metido a falar difícil, eu disse que queria
chafurdar é na mãe dele. Nunca mais vi esse camarada.

Toda vez que saio da sessão, passo no hall dos elevadores vejo à direita uma dessas
vending machines – nome esquisito que esses marqueteiros inventam para máquinas que
vendem guloseimas, snacks (outra importação pedante intraduzível) e refrigerantes em
troca de alguns dinheiros enfiados num buraco. Pois a tal vending machine tem um
biscoitinho que me deixa doido: bolinhas de queijo
ocas e torradinhas.

Sempre gostei de biscoitinho de queijo com ar dentro.
Sempre gostei, não. Posso me considerar um devoto, um fetichista, um obsessivo,
um compulsivo devorador de biscoitinhos de queijo com ar dentro.

O espocar daquela crocância entre a língua e o céu da boca me representa a felicidade
plena, como para o carola é a hóstia desmanchando contra o palato, sei lá,
é o que dizem os católicos praticantes.

De novo, o “dizem”, esse sujeito indefinido chamado senso comum me persegue. Há 25 anos
luto contra ele no aconchego de Ralph, o companheiro profissional e afetivo que me acolheu.
Sem sexo, claro. Somos héteros. Pensando o quê?

Mas voltando aos biscoitinhos de queijo. Lembro quando criança que minha sofreguidão
era tanta na hora de rasgar o saquinho vermelho salpicado de estampas circulares
– sim, eram eles, os biscoitinhos em desenhos hiper-realistas provocando salivas e pressa
– sempre caía um no chão.
E minha avó gritava.
- Não come! Joga fora! Está infestado de micróbios!

E meus olhos ficavam fixados no biscoitinho caído solitário, condenado ao lixo.
Que peninha.

Dava uma tristeza aguda imaginar o périplo que o biscoitinho desgarrado percorreu
em vão. Misturado com farinha, sal, água e essência de parmezon, amassado, assado,
empacotado, encaixotado, sacolejando por estradas precárias até chegar à prateleira
do armazém.
Para quê? Para acabar no chão, na vala dos inúteis?

Essa compaixão me atormentava nos piores e melhores momentos, nào importa onde, quando
e por quê.

Toda vez que tocava punheta, despejando milhões de espermatozoides na água
morna do chuveiro, engolidos pelo ralo do box, lá vinha a tristeza pós gozo,
a culpa, a comiseração, a vontade de me esvair também.

Eu fazia isso dia sim dia não, sempre que chegava do Ralph. Porque sempre descia
no elevador comigo uma moreninha bustosa de saia justa, talvez recepcionista de
algum outro consultório, que me dava um “boa noite” gostoso aos meus ouvidos e
maldoso ao seu sorriso, e virava-se de costas para minha curiosidade observadora,
que não livrava nem as sapatilhas rasteirinhas nos pés que encerravam batatas de
perna torneadas e assanhadas, como seus mamares arrebitados e seus glúteos inspiradores.
E a pretexto de encontrá-la na imaginação, já entrava no chuveiro em riste.

Um dia a moça sai do elevador e em vez de seguir porta afora, dá meia volta e para
diante da vending machine, bem atrás de mim. Eu tinha acabado de enfiar uma nota de
dois reais para comprar um saco de biscoitinho de queijo. Em instantes, o biscoito
está na minha mão, enquanto a vending machine anuncia em letras vermelhas:
LAST CHEESE COOKIE.

A moça entendia inglês.
- Que chato, logo na minha vez.
E eu entendia de cavalheirismo.
- Não se preocupe, fica para você.
- Muita gentileza. Só vou aceitar porque por que esse biscoitinho mexe comigo.
- Ái meu Deus. Não disse, mas pensei.

De tão atrapalhado, rasquei o saco com a sofreguidão parksoniana. E um dos
biscoitinhos saltou para o chão.
Ela emendou:
- Não come! Joga fora! Está infestado de micróbios!

Teria ouvido o que ouvi?
Neste momento os olhares se encontraram cúmplices. Olhos iguais, ora nos biscoitinhos,
ora nos rostos mútuos, que se reconheciam arrasados, lacrimejosos, combalidos diante
de um biscoitinho condenado ao lixo.

Sessão seguinte, no Ralph.

- Encontrei minha alma gêmea.

Ralph tinha o hábito de tirar os óculos, dar uma baforada nas lentes, limpá-las com a manga da camisa e falar duas vezes a mesma coisa.

- Como você sabe? Como você sabe?

- Manias de mãos dadas.

- Prossiga, prossiga.

Essa mania do Ralph me irritava há 25 anos. Mas prossegui.

- Ela tem dó de coisas que se perdem. Restos de Coca Cola despejados na pia, tronquinhos 
de brócolis abandonados no prato, azeitonas deixadas de lado num prato de pizza, remédio 
que cai debaixo da mesa, caroço de milho cuspido, ervilhas que quicam no chão, 
biscoitinhos de queijo que caem do saco.

- Transtornos obsessivos se atraem ou se repelem. Transtornos obsessivos se atraem ou se repelem. Vamos ver. Vamos ver.


- Temos diferenças que nos completam. Eu só fico com pena de biscoitinho que o destino 
lhe nega o direito de cumprir sua missão. Ela guarda tudo.

- Guarda? Guarda?

- Quando nos encontramos, aqui embaixo no hall, um biscoitinho caiu no chão. 
Ela fez cara de dó, abriu a bolsa e tirou um saquinho plástico. Colocou o biscoitinho 
lá dentro e disse que levaria para casa, que acolhia objetos abandonados, extraviados, 
que nasceram e morreram à toa.

- Mais empreendedora que você. Mais empreendedora que você.

- Trocamos palavras celebrando nossos sentimentos afins. Ela me convidou para ir 
à casa dela.

- Houve penetração? Houve penetração?

Nesse momento Ralph repetiu o ritual da baforada nos óculos e se aprumou na poltrona.

- Não se apresse, Ralph. Vamos por etapas. Era uma sala e dois quartos na praça 
aqui perto. Num quarto, uma cama de casal, no outro, uma porta trancada.

- Ela mora sozinha? Ela mora sozinha?

- Sim e não.

- Respostas objetivas. Respostas objetivas. Por favor, seja claro. Por favor, seja claro.

- Sim, porque disse que mora sozinha. E não, porque quando ela abriu o quarto trancado, 
dei de cara com estantes e mais estantes repletas de saquinhos com milhões de coisas dentro. 
Ela tirou o biscoitinho no saquinho plástico da bolsa e colocou numa prateleira cheia de 
outros troços malucos. Ela disse que era apegada a tudo que seria importante à sua existência. 

- Você consegue descrever? Consegue descrever?

- Cascas de banana ressecadas, mechas de cabelos, recortes de panos e jornais, porções 
de terra e areia, conchas, cavalos marinhos, patas de caranguejo, molares, incisivos, 
caninos, livros despedaçados, calcinhas manchadas de vermelho, cuecas amareladas, 
cacos de materiais diversos, pedaços de reboco, meias luas de unhas do pé, rolhas 
e tampinhas, não dá para descrever tudo que eu via, muito menos entender a 
razão porque estavam ali. 

- Cada coisa deve ter lá sua representatividade  na história da moça. Cada coisa deve ter lá sua  representatividade na história da moça.

- Isso. Isso. 

Esse cacoete de linguagem é contagioso. Segue o relato.  

- Reparei que num lugar nobre da estante central havia um saquinho com um chumaço 
de gaze e sangue. “É meu umbigo, que caiu quanto tinha duas semanas de vida. 
Minha avó guardou. Quer ver?” Agradeci e disse que estava na hora de ir embora. 
Ela disse. “Se você ameaçar ir embora, corto seu pau, enfio num saquinho e coloco na estante 
das coisas que não aproveitei. Ao lado do biscoitinho.” 
Neste momento, cresceu uma ereção descomunal.

- Bingo, bingo! Neuroses se atraem, neuroses se atraem!

- Quer saber? Não houve muita conversa, nem uma penetração. Mas várias. Noite adentro 
de atração carnal ululante, intercalada de línguas em sacos, lábios, grandes e pequenos, 
róseos e aveludados, glande, veias pulsantes e clitóris, lambidas gerais, chupadas de mamilos 
e dedões do pé.

-  Ela tem joanete? Ela tem joanete? 

Nem respondi. Fiquei olhando para a cara do Ralph.  Acho que o senso comum tem razão. 25 anos ouvindo minhas manias e o cara esquece que não fodo mulher com joanete.

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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