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terça-feira, 12 de maio de 2015

Desventuras de Margot (parte 01)



A ficha começou a cair quando puseram sobre a minha mesa, a mais diversificada do escritório, um livro para colorir. E de quebra um recadinho preso por um clipe à capa: “relaxe, meu bem. Aproveite e pinte com a mão esquerda. Serve como exercício de neuróbica. Seja feliz!”.
            Ok, ganhei atestado de mulher estressada, let’s relax.
            – Vai se foder quem colocou essa porra de Jardim Secreto na minha mesa! Eu quero uma passagem pro Caribe, alguém se prontifica? Hein? Prefiro tomar overdose de Fluoxetina do que ficar que nem uma retardada pintando, vocês não tem o que fazer não, é? Gente, que mundo é esse! Parem com essa infantilização, esse mimimi de que temos que resgatar a criancinha do seu interior! Acordem pra vida!
            As carinhas estateladas, a maioria por trás de lentes transitions, me olhando de suas cadeiras confortavelmente prontas para detonar todas as colunas.
            Sentei, respirei um ar gelado condicionado por uma máquina que respingava na cabeça dos ambulantes cinco andares abaixo. Fiz bolinha com o recadinho.
            – E ah, eu já bato punheta pro chefe toda semana com a canhotinha. Neuróbica ótima, me mantém empregada. Seus infelizes...
            Arremesso a bolinha no topete blindado de gel do Jackson. Sento de novo.
            Eu devia imaginar que essa do chefe causaria efeitos colaterais.
            – Não tem jeito, Margot. Depois dessa... você, você... pirou de vez! Como vou te manter no escritório depois dessa? O que vão pensar?
            – Que evoluí pro anal?
            – É, isso aí!... – exasperado, secando o suor da testa - você faria um anal, é?
            – Não ia doer tanto com você.
            – Porra é essa, Margot, tá dizendo que meu pau é pequeno?
            – Não, idiota. Quis dizer que já sou arrombada. Claro que é, né!
            – Olha aqui, você não está em posição de tirar onda com a minha cara, entendeu? Você tinha que rastejar aos meus pés. Implorar! Mas não, prefere me diminuir! Literalmente!
            – Quer saber, boss? Caguei pra você. Pra esse escritório mofado. Pra esses bafos de bala Halls preta que me dão náuseas.
            Ele cospe a bala na mão.
– Pra essa gente nada bronzeada que não se dá valor! Pra essas papeladas!
            E jogo papéis pro alto.
            – E vai fazer o que da vida, hein?
            – Faço ponto ao invés de bater ponto. Não digito mais nenhum ofício na vida dentro de uma sala com mais um monte de narizes fungando o tempo todo e respirando o mesmo ar.
            Antes de sair, ele pede que eu aguarde.
            – Lembra de me mandar o endereço da esquina que você for rodar tua bolsa, tá?
            Um dedo pra você.
            Recolho minhas coisas. Canetas, patuás, retratinho, caderneta, lixa, marca-texto, cataflan gel, calendário-brinde de supermercado, fone de ouvido, um pão embrulhado no papel alumínio de anteontem, calculadora (não, a calculadora é do babaca... ah, foda-se, vem de bônus).
Doralice me interrompe, trêmula.
            – Desculpa, eu, eu... só quis ajudar. Você parecia tão estressada ultimamente e...
            – Doralice, minha filha... vai colorir sua vida, vai. Pega uma praia, uma marquinha de biquíni... arranca esses boleros de veludo de vovozinha, cheio de pelo de coberta, coisa nojenta.
 – É que, é que faz frio aqui e eu tenho rinite e...
– Rinite o cacete, Doralice, quem tem rinite não dorme abraçada com ursinho de pelúcia!
– Não é ursinho, é um elefantinho rosa de infância, tá? Ah, e como você sabe que durmo com ele?
– Sai dessa, Doralice. Olha só, vem de decote pro escritório, frio é bom que faz o bico endurecer, dá aquele sinal sensual, sacou? Aproveita e tira esses grampos enferrujados da cabeça, solta esses cabelos, encharque de shampoo porque tá pingando óleo isso aí, usa um batom vermelho porque verde... tudo que é verde, minha amiga, não serve pra comer, né, vamos ser sinceras. Cata um macho, procura nesses Tinders da vida, hoje não tá difícil, o mundo tá carente.
– Mas, mas...
– Mas antes vai num cartório, abre um processo e troca de nome porque ninguém merece Doralice. Nem leitoa de novela de época das seis tem um nome poeirento desses.
 – Mas, mas... era o nome da minha avó! – já aos prantos.
– Ai, Doralice... me dá um abraço aqui.
Pronto, fiz minha boa ação do dia. Alma lavada.
Beijos, não me liga.
Catei minha trouxa e dei no pé daquele prédio. Dei o livro pra minha sobrinha de cinco anos e dias depois minha irmã me liga dizendo que já tinha largado os antidepressivos por conta do livro. Trancava a filha chorona no banheiro e assim podia se concentrar para encontrar o tesouro secreto através de um mundo multicolorido.
Já o meu mundo estava acinzentado, sem seguro desemprego, sem saldo no cartão, sem alguém pra dormir de conchinha, filando almoço na casa de parentes e amigos, economizando as economias...
Até que um dia ouvi o padre Marcelo, por acaso, numa rádio.
Troquei de estação. Pus meu cd do Alice in Chains em volume máximo, quebrei uns copos de requeijão que já me aborreciam há muito e acordei uns vizinhos vagabundos.
Num chopp dia desses com duas amigas, conversas foras, ex loves em pauta, paqueras e tal, solto uma gargalhada depois de ouvir da Sabrina que a vagina dela peida.
– Amiga... uau! Você é uma bruxa perfeita! – diz a Sabrina, arregalando os olhos.
– Que isso, Sabrina, tua vagina que peida e eu que faço feitiçaria?
As risadas continuam.
– Não, não é isso! A sua gargalhada agora me lembrou de uma coisa, hum... – dá uma golada no chopp – a minha mãe comentou em casa que vai rolar uma peça, uma parada do tipo, lá na escola dela, pro dia das crianças. E que ninguém queria fazer o papel da bruxa.
– Ok, ok, e você se lembrou disso por causa da minha gargalhada? Eu rio que nem uma bruxa?
– Não é isso, miga... é que você ri alto, engraçado, sei lá.
– Mentira, você acha meu nariz grande, né isso? Vai, confessa!
– Que isso, fala sério!
– Assim que eu tiver empregada de novo vou providenciar uma plástica nessa nareba, ah seu vou, escrevam isso!
– Nada, foi só por causa da risada mesmo amiga, desencana. Só pensei em você como uma possibilidade, e pá...
– Agora você quer me escalar pra ser a bruxinha malvada de uma peça infantil? É isso mesmo, produção?
– Por que não? Você é descolada e ainda é formada em professora!
– Querida, hello! Eu nunca dei uma aula na vida. Perdi três anos fazendo aquela bendita faculdade... só serviu pra ter um lance cult com o professor esquisito de Literatura Portuguesa.
 – Ah, sei, aquele que você disse que era amante do Camões? – recordou a Ana.
– É, ele dizia que tinha orgasmos lendo Camões... eu pensava que era no sentido figurado até o dia que encontrei porra na capa dos Lusíadas. Caí fora, lógico!
            – Vamos, amiga, topa, vai! Será divertido! Minha mãe tá desesperada, precisa pra ontem.
            Penso virando o chopp.
        – Ok, ok... Tua mãe é gorda, mas é gente fina... São quantas falas pra decorar nessa bagaça?

(Margot volta na parte 2...)



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