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terça-feira, 6 de maio de 2014

O EQUILIBRISTA


O EQUILIBRISTA





DE REPENTE as pessoas, que àquela altura estavam extasiadas com tamanho número, se assustaram grandemente. Quem estivesse do alto, como ele, poderia ver o impulso inconsciente da plateia indo pra frente com uma mão no peito e outra nos olhos, tomada de grande e repentino pavor, como Moisés diante da visão do seu deus, comprimindo os olhos, querendo, mas sem querer ver.
A corda balançava mais do que o normal. Todos já tinham entendido que ele era capaz de ser grandiosamente magnífico, basta!, basta de dificuldade!, já é hora de descer!, já tá bom de descer! E ele, não obstante, não descia. Estava na corda, balançando-se como um aprendiz, parecia ter perdido o equilíbrio, parecia não ser um equilibrista...
Mas o que é um equilibrista? Um ser humano que tem a habilidade de se equilibrar. Pois então? É um ser humano antes de ser um equilibrista, isto já basta. Mas na hora, depois de tanto frenesi do espetáculo circense, de tanta alegria e sorriso, vislumbre e nostalgia, depois de rufantes os tambores, as pessoas se esquecem, quase nunca se lembram, que os atores de circo são pessoas de carne e osso, sangue e sentimento, como nós. Às vezes eles mesmos se esquecem.
E ele, Maximiliano Bernardo, já tinha se esquecido de sua condição humana há muito! Na verdade, fez parte de um processo pelo qual passou, o processo de ser alguém comum, querer ser diferente, atestar que é diferente, tornar-se um artista de circo, querer ser melhor, tornar-se um dos melhores artistas de circo de todo o país, conhecido no mundo todo, praticamente. E a gente parece que quando vai subindo essas escadas, vai esquecendo que um dia esteve lá embaixo, sonhando com as alturas, se nos lembrássemos desses dias oníricos decerto valorizaríamos ainda mais nossa condição humana, mais do que nosso status quo. Mas, ora!, quem quer saber do passado pequeno quando se já é grande?!
Já não mais era o Maximiliano de antes, agora, era o grandioso King Max, o equilibrista! Sua chegada ao Gran Circus Majestic fora simplesmente pomposa, recebido com aplausos impostos pelo dono do circo a todos os artistas que, em fila ombro a ombro, viram-no descer de um monociclo diminuto esboçando um equilíbrio e virilidade nunca dantes vistos!
Foi justamente nesse instante, engraçado esses instantes, mais poderosos que uma vida inteira, que Ana Alice sentiu um não sei quê por dentro dela... Não sabia explicar como e porque, fora assaltada por uma excitação dos poros, uma vibração das cordas, um estufamento do peito, um bombardeio mais intenso de sangue pelo coração, uma sudorese terrível nas mãos, um cambalear das pernas, em suma, um malestar... Estava aflita, a pobre bailarina, e viu, com uma certeza típica da cegueira do amor, que estava diante da solução para os males de sua alma.
Dali em diante era o amor declarado, estampado em seu rosto, em seus gestos, em seu interesse tão recentemente descoberto pelo equilibrismo. Mas que cordas firmes e cambaleantes!, mas que precisão no salto!, mas que firmeza de pernas e pés!, mas que medo horrível que você caia!, mas que..., mas que... E enquanto isso o grande King Max ria, ria de morrer, ele estava sentindo-se um pouco mais vivo desde que começara a ouvir todas aquelas exclamações vindas de tão bela moça...
E quando a gente se sente amado, nem amado, desejado, disputado, essas coisas, sabe?, sobe à nossa mente um prazer indescritível, que nos torna ainda mais viris, ainda mais firmes e atraentes... Não importa o que sejamos lá dentro, não importa o que escondamos nos porões mais interiores de nossa mente, tornamos-nos justamente aquilo que trazemos no peito: puro ar, éter! A máscara cumprindo um papel. O grande King Max mal completara dois dias de chegado e já se sentia assim, o grande grandioso Great King Max! Os palhaços Lolli e Pop viviam de chamá-lo “o adorado das donzelas!”, se era!
Ocorre que no Gran Circus Majestic a única donzela, pequena lady, que ainda (r)existia era a Ana Alice. As demais moças, experientes na vida, entusiasmaram-se com o grande King Max, sim, mas um entusiasmo típico das regiões libidinosas! E ele, o garanhão equilibrista, soube servir-se de cada uma delas, soube apagar as chamas e evitar que aqueles calores queimassem a lona do circo.
Uma a uma as mulheres renderam-se aos seus atrativos, ele já não era o King Max, o equilibrista, ele era Zeus fazendo-se de touro para sequestrar a belíssima Europa! Ele era um deus, um deus do Olimpo, do céu, de todo lugar onde habitem deuses! Mas não era um desses deuses mandões, figuras de pais estéreis, barbudos e sem tesão, não, não, era um deus sensual, todo interessado nos prazeres da vida, da carne, da forte carne, Eros, Kama, Júpiter, Exu e seu ereto falo... E o príncipe tinha como único princípio a irresistibilidade.
Enquanto algumas bailarinas, trapezistas e arrumadoras de cenas saciavam seus rios de desejo e êxtase sexual com o King Max, Ana Alice vivia pelos cantos, anotando o nome dele em folhas de papel que se guardavam em sua caixinha de joias, “Maximiliano Bernardo e...”, “Max e An’Alice, amor para sempre...”.
O pequeno Jota B assistia a tudo isso com um desespero no coração. O peito dele também estufava-se, mas era de um ar pesado, nebuloso, seu coração também batia, mas era de batidas que mais se assemelhavam a estacas cravando-se firmes no meio do peito... Suas mãos e pés também suavam intensamente e também lhe faltavam firmezas nas pernas... Era uma revolução.
Parece que, às vezes, no mesmo lugar onde se instala o amor se instala a discórdia, o primeiro pra uns, a última pra outros. Parece que a vida não dá ponto sem nó, e se existe mesmo um Cupido, ou Eros, como queiram, deve de ser um Jano bifronte, do outro lado, como no Ying Yang, opera o mal.
Jota B não era pequeno por ser criança, mas por ser anão.
Anão de nascimento com toda aquela carga de explicação científica de elos e alelos, imperiosas, porém nem um pouco importantes para confortá-lo. Não entenda mal, não quer dizer que não fosse feliz por ser quem era, Jota B era feliz por ser anão, confortava-se com um “Deus me fez assim”, a infelicidade dele residia naquela parcela de nossa felicidade que a gente deposita na atuação do outro, na existência do outro, na necessidade do outro. Jota B era o anão engraçado do circo, que ajudava no espetáculo do ventríloquo e fazia algumas palhaçadas no dos palhaços, era sempre o motivo do riso geral da plateia, principalmente quando interpretava o pequeno anão Jota, cheio de manias de grandezas..., o público ria porque não havia nexo em um anão ser grande.
O público não sabia que o personagem de Jota B era ele mesmo. E ria na cara dele. E ele mesmo ria, amargamente.
Entre os chororôs agora habituais de Ana Alice, sobrevinham uns soluços, uns soluços terríveis, cada vez mais profundos...
– Ele não me quer, Jota!... Ele não me quer!
– Não diga isso, Alicinha, você é tão bonita, tão linda, verdadeira, sensível, uma bailarina que consegue fazer os melhores arabesques que já vi!, você é..., você...
Olhou para ele e se riu, um riso maroto, estava apaixonada, não conseguia perceber qualquer outra afetação que não a dela, as palavras dele serviam de consolo, mais nada. Ele, percebendo, também riu. Aquele seu riso de sempre.
– Você é um fofo, Jota B, desculpa ficar enchendo sua cabeça com essas firulas minhas, só minhas...
E ele abaixou instintivamente a cabeça, cada vez que ela dizia que ele era “um fofo”, tinha vontade de explodir. Não queria ser fofo, queria ser amado.
A primeira vez que percebeu isso foi quando Johny, na pressa de sua estreia no Gran Circus Majestic, com a plateia lotando o interior da grande lona, se esqueceu do boneco! “Como um ventríloquo, em sua estreia, se esquece do boneco?! Puta idiotice!”, bradara seu Maneco, apresentador e dono do circo, nos bastidores. “Andem, arrumem um boneco, joga lá pra ele, arrumem alguma coisa!”. Foi quando de repente viu a coisa que já deveria ter sido arrumada: Jota B.
– Ande, meu filho, se imitar o boneco direitinho, além de te dar o papel de ajudante de ventríloquo, aumento seu salário, agora faça aquela plateia rir! Vá lá!
Ele foi. Ficou no colo de Johny e fez toda aquela papagaiagem que os bonecos dos ventríloquos fazem, até que, de repente, sem quê nem pra quê, saltou do colo de Johny, assustando a plateia inteira, justamente porque todos juravam que era um boneco! Até o Johny, que já fazia o espetáculo com um costume habitual, maquinalmente, quando viu o Jota B saltar, teve ele mesmo um sobressalto!
Depois do susto, seguiu-se o riso. A plateia inteira riu, riu, riu loucamente, houve até quem se mijou de tanto rir! Seu Maneco quando soube promoveu Jota B ao posto de assistente de ventríloquo e deu ao pequeno ser um salário digno de quem, no circo, faz a plateia rir.
Mas nada disso tinha pegado na sua mente, como pegaria na mente de qualquer um feliz com sua performance, promovido no trabalho. Na mente de Jota B ficara apenas a imagem de Ana Alice, num canto da lona que dava para os bastidores, esperando sua vez de entrar, rindo de se matar,um riso bonito, cheio de dentes, dentes de fada... Naquele instante, vendo aquele riso, ele se apaixonou, sentia-se como se tudo e todos tivessem sido pausados no tempo, como se estivesse num universo paralelo, apenas ele e o riso de Ana Alice...
Como uma moça tão linda, tão angelical, poderia se apaixonar por um bruto desmamado dos infernos? Era a dúvida de Jota B, dúvida interminável, daquelas que culpam a divindade pelo mal do mundo. E, não obstante a toda indiferença do grande equilibrista para com Ana Alice, ela somente amava-o mais e mais, sem ser de qualquer modo correspondida.
O grande King Max se apresentava e em cada passada dele na corda, batia forte o coração de Ana Alice. Quanto mais alta a corda fosse posta, para que o público se admirasse, o coração dela mais apertado ficava, ela parecia não respirar... Jota B olhava o equilibrista do alto de seu brio e desejava que ele, de repente, caísse.
Foi então que depois daquela apresentação, Ana Alice correu toda esbaforida e alarmada para o grandioso King, para informar a ele o quanto ela tinha ficado preocupada.
– Esquente não, boneca, é meu trabalho. Disse desdenhoso, virando-se para a trapezista loira, Edwirges, que havia chegado, dando-lhe em seguida um beijo estalado, bem na frente da pequena bailarina, que, envergonhada, saiu como se ali nunca tivesse estado. Num daqueles cantos, Jota B, observava.
Todos continuavam boquiabertos, alguns não queriam nem ver, enquanto isso, no alto, o inferno... Ele já não mais se equilibrava, estava fora de si, como que tonto, seus olhos se fechavam lentamente e ele não conseguia verter o intenso sono que dele se apoderou.
Seu Maneco, do chão, mandava já encostarem as escadas, colocarem a cama elástica em baixo, tirarem ele de lá urgentemente. As pessoas da plateia esbugalhavam os olhos, mas não saíam da lona, pareciam querer ver o desfecho do espetáculo. O grande ato do equilibrista...
Foi aí que o grande King Max cerrou os olhos. O seu voo foi alto e derradeiro. As pessoas berravam de medo e susto, seu Maneco desmaiou, Jota B, alarmado, parecia um louco, não sabia se corria para socorrer o resto do homem, como os outros, ou se... Quando, de relance, olhou, a um canto da lona, na parte de espera do próximo número, viu Ana Alice, com aquele mesmo riso de outrora... Não soube o que sentiu, mas não era amor.

***

MARIO FILIPE CAVALCANTI (MARIO FILIPE CAVALCANTI DE SOUZA SANTOS) é pernambucano de Recife, nascido em 15 de janeiro de 1992; escritor: contista e poeta. Graduando em Direito pela centenária Faculdade de Direito do Recife, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Estudou piano clássico na Escola de Artes do Recife. Prêmios recebidos: Foi vencedor de vários concursos literários nacionais, como os de contos da Associação Nacional de Escritores (Brasília/DF, 2012), de contos “Cidade das Asas” da Secretaria de Cultura do Município de Gavião Peixoto (São Paulo, 2013) e Menção Honrosa no de poesia “8º Varal de poesia” da Faculdade Metropolitana de Maringá e Academia de Letras de Maringá (Paraná, 2013). Participação em antologias/revistas: É participante de Antologias poéticas no Brasil (IHGM, UFMA, 2013 – “Mil poemas para Gonçalves Dias”) e Europa (Chiado Editora, Porto, Portugal, 2013 – “IV Antologia de Poesia Contemporânea Entre o sono e o sonho”). É colunista da Revista SAMIZDAT (http://www.revistasamizdat.com/). Publicações: Autor dos livros “Comédia de enganos” (Editora Penalux/SP, 2013), Semifinalista no Prêmio SESC de Literatura 2014 e “Morte e vida e outros contos” (EdUFPE/PE, no prelo). Publicou em edições impressas das revistas eletrônicas SAMIZDAT (Madrid/Espanha) e Varal do Brasil (Genebra/Suíça) e em edições online da Revista de poesia “7 faces”/RN, 2013-14 (http://www.revistasetefaces.com/), bem como no “Espaço Castro Alves” do Diretório Acadêmico Demócrito de Souza Filho da Faculdade de Direito do Recife/UFPE. Contato do autor: mariofilipecavalcanti@gmail.com

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