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sábado, 3 de maio de 2014

206 NO SÓTÃO

206 são os que estão na escuridão. 
206 são um número ou uma corporação?
206 são os esquecidos que, no teu sótão, estão.

O sótão é o refúgio para todo tipo de esquecidos: desde roupas velhas até livros; desde diários, cadernos de poesia e cartas de amor, até importantes fotografias de família, caso essa valorize suas relíquias.

Quase tudo pode ser encontrado em um sótão. E, fora alguns casos incorrigíveis, o lugar é o esconderijo preferido das crianças, seja para brincar, seja para desbravar o mundo de velharias dos seus antepassados, que ali são jogadas pelas novas gerações, quando decidem que, tendo em vista que os velhos morreram, está mais do que na hora de redecorar todos os cômodos da casa herdada.

As crianças, embora receosas do que se pode encontrar neste lugar obscuro gostam de enfrentar esse medo, para preocupação dos progenitores, quando percebem que seus rebentos estão desaparecidos e silenciosos há algumas horas e eles não conseguem encontrá-los em lugar nenhum. Elas também sempre esperam encontrar um mapa do tesouro, roupas de piratas, ou gênios de lâmpadas sem brilho, e, quem sabe com sorte, algum monstro que terão que exterminar aos berros e pontapés.

O sótão, além de acolher os esquecidos, serve para dar asas à imaginação de crianças e adultos. 

Contudo, ela nunca tinha sido uma criança comum. 

Por isso nutria uma desconfiança sombria, misturada com uma emoção que ela não entendia do que se tratava, contra o sótão do avô. Seus parentes, principalmente os primos da mesma idade ou mais novos, que amavam se enfiar nesse local da casa antiga, viviam rindo dela, dizendo que era covarde; que acreditava em histórias de assombração.

Enfim, que não era digna do nome que carregava por ter medo de brincar naquele lugar cheio de quinquilharias e promessas de aventuras.

Ela bem poderia ter crescido traumatizada com essas maledicências, embora se sentisse muito irritada com as mesmas e até com a insistência de seus pais para que acompanhasse os primos nas brincadeiras no sótão, mas a estranha aversão/atração e sua prudência em não ir até o sótão era maior que qualquer piadinha que poderia ferir sua autoimagem. 

Portanto, quase nada do que lhe diziam surtia efeito e ela persistia em sua acirrada decisão de não visitar aquele canto da casa. Algo que se arrepiava em sua nuca aconselhava-a a manter distância porque ali, ali não era seguro ou algo estava realmente escondido em meio aos badulaques juntados pelo seu avô, médico aposentado.

Mas a menina cresceu; tornou-se adulta e, em função da escolha profissional que fez, acabou indo morar com o avô para auxiliar nos cuidados do velho acometido de uma desconhecida doença terminal. Isso lhe deu experiência para realizar um estágio excelente e formar-se com louvor no Curso de Enfermagem, na FURG.

Apesar de morar no antigo casarão e gostar de todos os ambientes que ele possuía, ela persistia em não visitar o sótão. Nunca. Mesmo quando seu avô lhe pedia, às vezes durante a madrugada, algum objeto que se encontrava no lugar. 
Ela se negava terminantemente e dizia para ele pedir para a empregada do dia.
O velho, que sempre tinha sido meio rabugento e piorara com a doença estranha, rosnava, xingava, dizia que ela queria acabar por lhe matar, depois implorava, chorava e, por fim, acatava a decisão da sua neta, que, afinal, ele amava mais que todos os outros dez que possuía.

Um dia, quando a empregada voltava do sótão, ela acabou sentindo uma pequena e singular vontade de conhecer o mesmo. Afinal, ela até concordava que suas emoções em relação ao lugar eram um tanto irracionais. Então, começou a subir com cautela as escadas que davam acesso ao ambiente mais arrepiante da casa, enquanto uma vozinha interior e um frio no estômago lhe diziam para não continuar.

Quando ela estava colocando o pé no antepenúltimo degrau da escada ela viu risco de luz, que entrava pela pequena janela do sótão, bater sobre algo tão branco e polido que refletiu a luminosidade em todas as direções, principalmente em direção a seus olhos escuros. Seu cabelo arrepiou-se imediatamente e ela resolveu voltar pela trilha que já tinha galgado. Ela sabia o que era, mas mesmo assim, o mal estar que aquilo lhe trazia era superior as suas forças.

Enfim, ela desceu e empurrou a escada para cima até que o alçapão fechou ‘aquilo’ na escuridão do sótão. Demorou um pouco, mas depois de algumas horas ela já havia recuperado sua tranquilidade, embora durante alguns dias sua nuca ainda se arrepiasse ao passar por baixo da boca daquele lugar de trevas e segredos.

Assim se sucederam alguns dos anos desta menina enfermeira na casa de seu avô médico, que, por fim, acabou morrendo de forma dolorosa e assombrada por alguma coisa que ele balbuciava, mas nenhum parente ou amigo conseguia traduzir.
Somente o medo era apreensível em sua voz de moribundo.
A casa foi destinada em testamento para a neta que cuidou do avô até a sua morte repulsiva, em virtude da doença que ele possuía. Apesar do sótão, ela ficou feliz em receber tal presente; sempre gostara do casarão, ao contrário dos outros membros da família. Os demais bens do velho doutor, que não eram poucos, foram destinados aos filhos como manda a lei.

Após o enterro do velho, e ultrapassada a primeira semana de luto, a neta, que herdara a praticidade do avô, e a desenvolvera por vício de profissão, entendeu que já era hora de realizar a costumeira seleção nos objetos deixados pelo defunto, doando o que não era importante, descartando o que se poderia considerar lixo, e guardando apenas uma ou outra lembrança mais significativa.

Os móveis de doente, que foram usados pelo velho durante sua enfermidade, foram doados a Asilos; os aparelhos médicos foram repassados a Postos de Saúde da periferia da cidade, que era carente neste aspecto; as melhores roupas e sapatos foram doados para campanhas de caridade.

Tudo foi limpo, revistado e selecionado nos dois andares do casarão. Ela somente preservou um ou outro móvel mais antigo, dos quais ela sempre gostara; os livros de literatura e os mais recentes na área médica, bem como o acervo de discos de vinil que seu avó gostava de colecionar. Como havia também recebido uma gorda quantia em dinheiro, remobiliou a casa mais a seu gosto e com algumas comodidades da vida moderna.

Mas ainda faltava um lugar para arejar e livrar de seu conteúdo: o sótão. 

Ela sabia que precisava fazer isso com urgência, pois já ouvia o ruído de patas no local, mas nunca tomava a atitude esperada; sempre adiava a limpeza, por falta de tempo, ou por falta de coragem.

Ela até pensou em chamar seu irmão para ajudá-la na tarefa, porque, certamente, ali deveria haver coisas que a família gostaria de preservar. Entretanto, lembrou-se de todas as zombarias que ouviu por longos anos e mudou de ideia. Iria realizar a tarefa sozinha, mesmo que precisasse um pouco mais de tempo e tivesse que exorcizar as ratazanas que sabia que estavam se escondendo no interior dos poucos móveis e das grandes caixas que estavam guardadas no sótão.

O impasse permeou a cabeça da moça por mais uma semana. Mas, assim como ocorre com o tempo, que se esvai sem que desejemos, algo forçou-a a tomar a atitude necessária.

Ela dormia. Havia se deitado cedo, pois um temporal, daqueles que somente caem na cidade gris, desabava no asfalto frio e tinha cortado a energia elétrica, aparentemente em toda Rio Grande. A chuva estava alagando as ruas de areia das vilas e fazendo os bueiros mau construídos e entupidos vomitarem, nas vias do centro, dejetos indesejados. Fazia frio, apesar de ser verão. A ventania varria a água acumulada nas esquinas. 

Era sábado quando adormeceu ao som da chuva e dos trovões, coisas que a deixavam amedrontada, mas que acabam trazendo a tona um sentimento estranho de que podia fazer qualquer coisa. A tormenta sempre fazia com que se sentisse inexplicavelmente poderosa.

Quando o sábado transmudou-se em domingo, mais precisamente a 00:05 da noite, ela acordou sobressaltada, sentando-se na cama com a testa e o corpo suado por causa de um daqueles sonhos que sempre tivera e nunca contara a ninguém. A chuva batia contra as vidraças da janela do seu quarto, agora com menos intensidade. Ao fundo, ainda se ouviam alguns trovões e riscos de relâmpagos se afastando vagarosamente em direção ao mar.

“Então, é agora. É agora que vou até lá e limpo aquele lugar até a última poeira”. Pois ela não era poderosa, ela não era corajosa, ao contrário do que pensavam. Não fora ela que enfrentara aquela doença do avô, tão nojenta, mas que se agravou mais por causa do cérebro do velho, com seus segredos? 

Ela iria, sim, agora, para o sótão.

Levantou-se, vestiu uma roupa confortável e saiu do quarto. Pegou a vareta usada para alcançar a abertura do sótão, dentro de um armário embutido na parede. Posicionou-se embaixo do alçapão. Não titubeou como das outras vezes. Simplesmente abriu a portinhola e viu a escada descer suavemente até o chão. Guardou a vareta e galgou os degraus.

Quando chegou ao último nem sequer se preocupou com a brancura que sempre lhe causava desconforto. Dirigiu-se diretamente para dois abajures que estavam sobre antigos criados mudos. Ligou ambos. Os objetos irradiavam uma luz baça que só permitia que se observasse as caixas e móveis mais próximos da área que iluminavam.

A chuva ia diminuindo de intensidade, transformando-se num leve chuviscar que deixava aquele ambiente aconchegante. Ela gostou da sensação e prontamente começou a remexer nas coisas que estavam a sua mão, catalogando o que desejava manter e acomodando em algumas caixas vazias que encontrou as coisas das quais pretendia se desfazer.

As fotos de família iam ficar, claro. Assim, como algumas cartas de um diário que pertencera a sua avó. Observando os móveis perto de si, encontrou duas poltronas e um pequeno divã que resolveu manter. Havia também uma mesa de madeira maciça, com cerca de 1,50m de comprimento. Ela iria transformar aquele sótão num lugar de leitura e relaxamento para si mesma. Iria adquirir uma estante que combinasse com os móveis antigos que escolheu. 

O resto dos móveis que achou iria doar. Não lhe despertaram maior interesse e nem combinavam com o que ela estava pretendendo para a decoração do local, que agora estava passando a amar.

Voltou a remexer nas outras caixas que ainda estavam fechadas. Seu interesse e sua vontade de terminar o serviço ainda não tinham se exaurido. Ao contrário, parecia que, quanto mais ela mexia nas caixas lacradas, a expectativa que estava sentindo desde que entrara ali aumentava. Algo lhe dizia que tinha algo importante para ser encontrado ali naquele caos organizado pela mente extraordinária de seu avô, embora ele não aparentasse ter metade do brilhantismo intelectual que possuía.

Então o relógio de carrilhão, que ficava no escritório de seu falecido ascendente, gritou o tempo: três badaladas, três horas da madrugada. Ela nem sequer piscou. Estava consciente do horário, mas a excitação que sentia era maior. Havia encontrado uma caixa diferente do que até então vira.

Era uma caixa de madeira de lei, lacrada por dois cadeados com segredo. Ela precisava, ela necessitava abrir aquela caixa, sob pena... sob pena de que? De ficar louca, claro. Para seu avô ter feito aquilo ele deveria ter uma razão muito forte. Devia querer que alguém específico da família a achasse e revelasse o que ocultava.

Não sabia explicar, mas aquela caixa era para ela. Tinha certeza.

Mas qual seria o segredo? Como ela poderia abrir aquilo que parecia ser o maior presente que seu avô havia deixado para ela se não tinha ideia de quais números abririam os cadeados?

Durante meia hora ela tentou várias combinações, sem conseguir desvendar aquele mistério. O sono já estava começando a pesar sobre seus olhos e a influenciar seu raciocínio. Ela levantou para esticar as pernas que estavam cansadas de estarem na mesma posição por tão longo tempo, além de estarem irrequietas. 

Ela se aproximou da mesa comprida e pousou ali as mãos, refletindo sobre a situação, enquanto alongava os músculos dos membros inferiores, hábito adquirido no trabalho. Foi quando ela percebeu um papel empoeirado embaixo de uma pilha de livros antigos sobre anatomia.

Retirou os volumes de cima da folha. Ali constavam duas anotações com a letra de seu avô: “O primeiro dia mais importante da minha vida”. Do lado uma data: 12/12/1950. Essa ela sabia, foi o ano em que o avô se formou em medicina pela instituição que hoje é conhecida como UFRGS.

Testou os números nos dois cadeados. Um deles abriu. A sua excitação aumentou. Ela voltou à mesa e leu a segunda frase: “O segundo dia mais importante da minha vida”. Do lado deveria haver uma data também, mas não fora anotada. 

Ela pensou: “Qual foi a segunda data mais importante da sua trajetória, vovô? O seu casamento? O nascimento do seu primeiro filho? O dia da sua primeira cirurgia neurológica? Qual vovô? O senhor deveria ter anotado, pelo menos para facilitar minha vida uma única vez”, pensou irritada.

“A data do meu nascimento!”, pensou sabendo do amor que seu avô tinha por ela. Testou a data no cadeado, mas ele não abriu. Isso a magoou um pouco. Talvez ela não fosse tão importante para o velho. Deveria desistir. Mas a curiosidade expectante não permitiu. Voltou para a mesa, se apoiando nela novamente.

Deslizou a mão esquerda, a que usava para escrever, pelo tampo do móvel, já achando que teria esperar a luz do dia pra tentar descobrir a maldita data. Quando seus dedos alcançaram a borda da mesa eles sentiram alguns arranhões na tábua, o que não era típico dos móveis de seu avô, pelo menos daqueles de seu uso particular, como parecia ser o caso dos que estavam no sótão.

Ela passou novamente os dedos ali e sentiu alguma coisa se mexer nas sombras de seu cérebro. Olhou com mais vagar. Era fato, tinha alguma coisa ali. Trouxe um abajur para a mesa e espalhou a poeira acumulada com um pedaço de pano qualquer. Surgiu uma sequência de números: 29021988.

Aquela ‘alguma coisa’ clareou um pouco mais em sua mente.

Voltou rapidamente para a caixa. Utilizou a sequência que memorizou. O cadeado abriu facilmente. Ela esboçou um sorriso de vitória. Sempre fora persistente, seu avô costumava lhe dizer com satisfação.

Dentro, bem acondicionados, frascos e aparelhos para pequenos experimentos químicos, físicos, bioquímicos, além de instrumentos para estudo de anatomia humana. No meio de tudo um envelope lacrado e um caderno. 

No envelope, um nome: o seu.

Na primeira página do caderno, um título: O Experimento.

Na segunda, uma breve análise do tipo físico, do peso, da idade, daquilo que seu avô denominou de “A Cobaia”.

Depois, várias páginas com explicações e desenhos da anatomia do sujeito usado nas experiências do falecido médico, assim como das conclusões que ele chegou em cada etapa do estudo.

Ela estava muito excitada. Agora começava a compreender o que seu avô queria. Não conseguia ainda explicar racionalmente o que era, mas ela entendia, ela entendia o que ele fez, o porquê, a sua ânsia pelo conhecimento e como isso devia, também, deixá-lo em um estado semelhante ao que ela se encontrava no momento.

Então, abriu o envelope. Dentro uma única folha, assim redigida:

“206 são os que estão na escuridão. 
206 são um número ou uma corporação?
206 são os esquecidos que, no teu sótão, estão.

Minha amada neta:

Ah! Se pudesses ver a expressão dos teus olhos quando me encontraste no sótão hoje... a deliciosa expressão que eu vi, porque foi nesse instante que eu soube que seguirias o mesmo caminho.
Quando leres esta carta tu irás compreender o que eu compreendi hoje: o quanto somos iguais.
Tu irás entender melhor ainda quando os encontrares. 
Eles estão ali. Podem ser entrevistos por meio da sua brancura polida ao refletirem a tênue luz que adentra o ambiente através da minúscula janela num dos cantos do sótão. Por uma incoerente coincidência qualquer espectro luminoso acaba sempre incidindo sobre eles, independente do ângulo em que se projetam dentro do ambiente semiescuro.
Estão ali desde sempre, desde que tu te conheces por gente, provocando medo durante a infância, curiosidade meio mórbida na adolescência, e um pavor solidificado agora que és adulta, mas tens coragem para enfrentá-lo. Apesar de não querer fazer isso, tu o farás, porque o desejo será maior que a vontade de evitar as consequências. 
Sim, tu irás enfrentá-los porque eles fazem parte de ti, eles fazem parte do que serás depois que encontrares a caixa, esta carta e entenderes, finalmente, o que és.
Será um dia feliz este, porque eu continuarei a viver contigo e através de ti. Nossa obra será grandiosa.

Seu sempre,

A.

        Rio Grande, 29 de fevereiro de 1988.”

Ela suspirou porque a carta não era muito esclarecedora, embora ‘aquela coisa’ na parte obscura de sua mente estivesse quase visível, quase palpável. 

Olhou para a pequena janela do sótão. Havia parado de chover. A lua tinha resolvido brilhar, embora ainda de forma pálida. Mas a luz que adentrava no local iluminava quase todos os recantos antes quase totalmente escurecidos.

Ela seguiu lentamente a direção dos raios de luar. Então, uma frase da carta aflorou em sua consciência. Releu avidamente o trecho: “Eles estão ali. Podem ser entrevistos por meio da sua brancura polida ao refletirem a tênue luz que adentra o ambiente através da minúscula janela num dos cantos do sótão”.

Fulminou aquele canto escuro que tinha evitado até esse momento. Lá estava a brancura polida resplandecendo por causa da luz da lua. Ela havia encontrado o conjunto. Levantou-se de supetão e foi até o lugar em que eles estavam: os 206 esquecidos no seu sótão.

Esquecidos até que ela os encontrasse finalmente e lembrasse quando os tinha visto pela primeira vez, mas ainda sem serem os 206.

Dèjá vu.

A ‘coisa’ saiu das sombras de seu inconsciente sorrindo. Ela lembrou o seu oitavo ano de vida. O dia: 29 de fevereiro, quando fora passar a noite na casa dos avós. Lembrou que a idosa senhora já estava dormindo. Que ela acordou no meio da noite, por causa de um sonho mau. Que saiu da cama, atrás do avô, que era o único que conseguia acalmá-la nessas horas. Ele não estava no quarto.

Ela viu a escada do sótão baixada. Lembrou de galgar os degraus com um pouco de dificuldade. Viu a luz mortiça do sótão acessa e seu avô debruçado sobre a mesa.

Ouviu sua voz infantil dizer: “Vô?”.

O velho se virando rapidamente, tentando esconder com o corpo e um lençol algo sobre a mesa; algo manchado de vermelho misturado com branco e cor de areia. Era tão colorido e tão bonito e ela sabia instintivamente o que era, mas não teve medo.

Ele a observou por alguns segundos. Então gritou: “O que queres aqui, Liliane! Desce agora”.

Viu a si mesma, assustada com o tom do velho, geralmente tão tranquilo, descendo as escadas e se cobrindo com o cobertor, chorando no escuro. Escutou quando o avô entrou devagar no quarto, sentou em sua cama, colocou a mão em seu pequeno ombro. Ficou em silêncio por alguns momentos.

Depois disse com uma voz tranquila, mas cheia de uma nova ternura:

“Desculpa. Não devia ter gritado. Estou fazendo um trabalho importante. Ninguém pode saber. Será nosso segredo. Promete que não contará para ninguém?” Ela se viu olhando para o homem a sua frente e balançando a cabeça, depois dizendo:

“Eu só queria ver o colorido. Era tão bonito”.

O velho sorriu. 

“Sim, é muito bonito. Um dia tu irás fazer o mesmo trabalho que eu. Mas por enquanto não podes ver. Promete?” Ela concordou.

“Promete, também, que só vais voltar no sótão quando eu mandar ou quando estiveres preparada? Não quero que tenhas medo do trabalho que vais fazer no futuro. Promete?”.

“Sim, vovô, eu prometo”.

Então o homem levantou, sabendo que a neta iria cumprir o que prometera e foi dormir.

Mas ele não sabia era que Liliane nunca teve medo do sótão. Ela tinha era um desejo esfomeado de entrar lá e descobrir o que tinha que fazer para ser igual ao avô. 

Não, ela nunca tivera medo, como seus parentes pensavam.

Ela apenas não conseguia suportar a espera.

Agora ali estava, diante deles, dos 206 ossos que seu avô montara e polira, pacientemente, durante um ano, após retirar tudo o que os recobria e fazer experiências com o material coletado com a cobaia ainda viva, que o cientista havia capturado numa das ruas de Big River. Ele anotara todas suas conclusões no caderno que sua neta tinha em seu poder.

Agora Liliane estava preparada. Sabia o que tinha que fazer com tudo que recebera de herança do avô, que a amara pelo que ela era realmente.
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Uma semana depois, com o sótão já reformado, Liliane trouxe para casa a cobaia 2: uma jovem de pele clara, cabelos escuros, de uma beleza comum, mas digna de ser escolhida para a experiência. Sua estrutura óssea devia ser linda, ela refletiu.

Liliane olhou sorrindo para os 206, que agora possuíam lugar de destaque no sótão. Eles eram os únicos que entendiam a grandiosidade deste momento para a história da ciência moderna. 

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