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quarta-feira, 16 de abril de 2014

Uma história comum

Este frio úmido está comendo os meus ossos. Preciso consertar o aquecedor e parar de usar tanto a lareira...
— O senhor quer que eu acenda a lareira agora? — me pergunta a mocinha de uniforme.
— Não, agora não, obrigado. — respondo, interrompendo o pensamento.
Às 5 horas tenho um encontro com Angélica. Vamos tentar uma partilha amigável de bens, mas, com certeza, haverá ferimentos de batalha. Na verdade, o que eu quero mesmo é vê-la. Sempre me encanta absorver a figura sensual de Angélica. É discreta, mas insinuante; cabelos lisos, escovados, olhos sem máscaras. A boca rosada se deve mais ao hábito de morder os lábios do que a qualquer carmim.
Quando a vi pela primeira vez, ela não reparou em mim, e minha virilidade acostumada ao reconhecimento ressentiu-se. O par de olhos risonhos estava entretido com outra coisa, outra pessoa: um transeunte, uma vitrine, não importa. Eu cruzava a rua quando me deparei com ela, parada na calçada oposta.
— Está perdida? Posso ajudar?
Que idiotice essa abordagem adolescente. Um ato impensado, sem propósito.
— Não, obrigada.
Desnecessário ser despachado assim.
— Mas eu gostaria de tomar um café e estou na dúvida sobre qual deles é o melhor. — ela recuou — Você sugere algum em especial? — perguntou, casual.
Relaxei o maxilar travado instantes atrás pelo embaraço e me virei para avaliar a fileira de mesas espalhadas aqui e ali nos vários cafés daquela rua. 
— O Café Suisse — respondi sem pensar.
— É bom mesmo?
— Ótimo. O schümli deles é perfeito. Servem também os italianos, o irlandês, o escocês...
Schümli? — a risada combinava com a boca, e aquela boca ria de mim! — Eles servem também o Affogato, o Chanoniz, o Imperial?
Então era isso, ela debochava de mim sem nenhuma reserva! Melhor partir antes de um desastre completo.
Mas não aconteceu assim.
Acabamos nos sentando para um café e consumimos horas de boa conversa. Nos dias e meses que se seguiram, nossos caminhos foram se entrelaçando ao longo de jantares, vinhos, filmes, livros e carinhos.
Não sei depois de quanto tempo fomos morar juntos. As mulheres têm esse dom de guardar datas. Eu, por exemplo, conto apenas com uma boa agenda. Não foi difícil sequer me acostumar com Angélica. Se, pela manhã, as roupas dela estavam espalhadas no banheiro ou no closet, à noite não restava vestígio de nada. Se o cheiro de chocolate do meu cachimbo impregnava o ambiente, era eu quem corria a abrir as janelas da saleta para renovar o ar. Hoje, um almoço de massas leves, regado a um bom Chianti. Amanhã, uma carne rubra incandescente, cortejada por um Bourgogne relaxante.
Angélica pecava apenas por manifestar os sintomas das mulheres que amam: estava sempre em busca de beijos românticos e seu corpo não se saciava somente com o puro prazer, mas exigia palavras, diálogos, humores adequados.
Os homens não se aproximam muito do amor; são atraídos quase sempre pelos atributos da carne. Depois, às vezes, se encantam um pouco mais além. E se a coisa vai ainda mais adiante — e é certo que o "se" e o "adiante" preferem manter-se afastados em distância prudente. — só então se permitem gostar. Amor é descuido.
Eu não queria prescindir de Angélica. Ela fazia parte da minha vida, eu estava acostumado com ela, gostava dela. Então, para fugir à possibilidade de descuidar-me por causa desse gostar, passei a concentrar meus dias em hábitos antigos.
— A que horas você chega, hoje?
— Não me espere. Hoje é dia de pôquer com o pessoal.
Havia também os drinques com os colegas do escritório.
— Vai chegar tarde?
— Não sei ainda, melhor você dormir — e tarde era sempre a opção da noitada.
Em casa, programas de televisão, música, livros. As mesmas perguntas; as mesmas respostas. Então, aconteceu aquela noite de terça-feira em que o jogo da semana foi desmarcado. Que tédio. Ir para casa seria o mais lógico, mas quebrar rotinas podia se tornar um perigo. Uma vez aberta a exceção, Angélica poderia se achar no direito de me pedir para não ir outras noites, ou quem sabe iniciar aquelas lamúrias que as mulheres repetem com maestria.  Sentei-me num bar de calçada, meio perdido.
— Um Glenffidich, por favor, em copo longo. Pode trazer a garrafa e um balde de gelo. Uma água sem gás também.
Ambiente e bebida não combinavam nem um pouco, mas o garçom me pareceu feliz com o pedido. Alguns casais caminhavam rua acima ou rua abaixo, sem pressa. A agitação do local era pouca, mas havia harmonia naqueles rostos.
Reconheci Angélica pelos cabelos lisos. Ou teria sido pelas mordidas nos lábios que há tanto tempo eu não via? Não houve sobressalto em vê-la ali. Na verdade, eu nunca tinha me questionado onde Angélica estaria nas minhas noites de jogatina. Nunca perguntara a ela. Eu apenas me senti desapontado, como se o controle das coisas me escapasse um tanto. Não me inquietou ao menos olhar para o homem que se sentava à sua frente, do outro lado da rua, naquele restaurante à meia-luz. Só me senti curioso. E foi assim até que as mãos daquele homem se apossaram das dela; e as mãos de Angélica permaneceram nas dele, aconchegadas.
Depois de muito tempo me levantei daquela mesa. A névoa dos meus olhos fazia da embriaguez a única companheira da noite, e foi ela que carregou para casa o que restava da minha lucidez. Havia agora dois homens dentro de mim, e ambos me corrompiam: um queria ferir; o outro, chorar.
Tudo me pareceu tão longe até em casa. E se Angélica ainda não estivesse lá? Há quanto tempo os dois estavam tendo um caso? Vagabunda!, pensei. Vou sacudir aquele corpo devasso e gritar nos seus ouvidos palavras infames.
A porta do quarto estava entreaberta e eu senti o perfume de Angélica no nosso banheiro. Ela estava lá, refletida no espelho, limpando o rosto como fazia todas as noites. Álcool, ciúme e estupidez se combinaram em violência e eu cravei as mãos nos seus ombros. 
— Quem era aquele homem? Diga logo, vagabunda!
Esperei que ela negasse. Desejei mesmo que negasse. Quis que ela tremesse, que me pedisse perdão, que tivesse medo de mim, que chorasse em meus braços.
Mas não aconteceu assim.
— Um homem que me ama — respondeu, insensível. 
"E eu por acaso não te amo?", minha boca perplexa quis gritar. Mas a voz se acabrunhou, subitamente. De que amor eu falaria a ela? Do amor descuidado que não me permitia saber como tê-la ao meu lado? Do desprezo que eu sentia pelas suas emoções? Dos dias de solidão que eu lhe imputara conscientemente?
Não houve gritos, choros, discussões, acusações. Apenas um desespero intenso que me envolveu em angústia, medo, solidão. E antes que eu pudesse recompor as palavras, aquela boca rosada me disse:
— Eu vou embora hoje mesmo. Não vou mais voltar. Depois a gente conversa sobre o que for preciso.
Enquanto eu ardia por dentro em sensações desencontradas, ela se foi assim, em três frases. Adormeci pensando em absurdos, consumido por imagens de uma fêmea que se contorcia em dar prazer a outro homem, e ria da minha dor.
Faltam 20 minutos para o nosso encontro. Tenho pouco tempo para repassar o que quero dizer. Quero lhe provar que faço qualquer coisa por ela. Convencê-la de que é possível cultivar o sentimento. Quero que não me deixe, que não me deixe nunca.
Então, vejo-a entrar. E ao encarar seus olhos sem máscaras percebo que não se trata do que eu quero. Nenhum passado a resgatar. Ela já partiu de mim faz muito tempo.
O frio e a umidade estão entranhados nos meus ossos.  Preciso voltar e acender a lareira.


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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


11 comentários:

Um texto maravilhoso: leitura agradabilissima. Parabens, Cinthia.

Verdade, muitos só valorizam um alguém, quando o perdem. A história se repete sim, mas contada com esse brilhantismo, torna-se especial, sempre. Parabéns, Cínthia! Adorei!!! (Para NÃO variar... Rs!)

Ai, esses seus cotidianos tão comuns e tão profundos colocam a gente para pensar. Pensar na própria vida, nas coisas que não dizemos, nas pessoas que conhecemos... E descobrimos que do que se vê, muito pouco se sabe.
Parabéns, Cinthia, por conseguir desnudar a alma humana de maneira simples e poética!

Amei, amei, amei!!! Texto fantástico! Sim, a amiga disse bem, você conhece como ninguém a alma humana. Uma história tão banal contada de um jeito que nos pega e nos faz querer mais. Adorei, Cinthia!

Amei, amei, amei!!! Texto fantástico! Sim, a amiga disse bem, você conhece como ninguém a alma humana. Uma história tão banal contada de um jeito que nos pega e nos faz querer mais. Adorei, Cinthia!

Magnífico e espantosamente real!

Este comentário foi removido pelo autor.

Amiga super querida, obrigada pela reflexão! Beijos

Cecilia, sempre atenta! Obrigada, amiga!

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