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domingo, 22 de dezembro de 2013

Natal depois do fim do mundo

Professora de três, mãe de dois, mulher de ninguém e dona de nariz algum, Ana torcia para que os Maias estivessem certos. Naquela altura da vida ainda precisava aprender tanta coisa para chegar a uma cota razoável de paz e ensinar outras tantas para garantir a cesta básica e a lisura dos filhos, que estava exausta. Farta, mesmo. Cansada de dar conta, manhã-tarde-noite, de planejamento, aulas, avaliações e reuniões pedagógicas, de ter que esticar o tempo para alimentar, dar banho, vestir, pentear, conversar, fazer dormir as crias e, principalmente, de não sobrar hora para o básico: tirar a sobrancelha, pintar as unhas, amar(-se), por exemplo. Por ela, enterraria com o mundo todos os compromissos, deitaria no vinte de dezembro e não acordaria nunca mais. Nunca mais, como na propaganda da cerveja.

O vinte e um amanheceu quente e assim foi até o céu abusado de tão laranja daquela tarde dar lugar à noite limpa e fresca e à madrugada que não acompanhou. Esperou tsunamis, chuva de meteoros, tornados, furacões, alienígenas, catástrofes hollywoodianas e nada. Despertou no vinte e dois e a pilha de exames para correção ainda estava lá, meus dinossauros, pensou. Fez um café forte e sem açúcar, amarrou os cabelos, catou canetas no estojo e pôs-se ao trabalho enquanto os pequenos não levantavam. Mas o pensamento, essa coisa nuvem e aflita que se governa, não parava nas questões da página e ia pousar nas ruínas. Do planeta. Ana estava decidida a não abrir as janelas nem a porta, a não atender telefone nem ligar computador ou televisão. Caso o caos estivesse lá fora, faria um estrago ao juntar-se com a bagunça de dentro. E estar ali, viva, só podia significar algo importante, raro, um sinal. 

Calculou o que ainda havia de consumível na geladeira, cogitou armazenar água e reunir as lanternas, as velas e fósforos em lugar estratégico na cozinha, sabe-se lá até quando o abastecimento iria durar. Já havia sobrevivido a outros fins, mas agora era diferente. Talvez o ar, o silêncio da rua ou o sono prolongado dos filhos a fizessem sentir assim. O fato é que Ana era dura e não conseguia deixar obrigações de lado. Se havia restado em pé depois que o mundo acabou, tinha o dever da reconstrução. Sabia vagamente por onde começar – quando chega muito perto, a finitude tem desses truques, de apagar o tempo e deixar que apenas pedaços de memória venham à tona com certa força – e o fez. Colou a última folha do calendário na parede e riscou os dias seguintes até o vinte e cinco. Natal, lembrou, sem alcançar o motivo da data festiva. 

Árvore, luzes, vermelho e verde e dourado, presentes, peru, família, enumerava mentalmente figuras e símbolos e buscava em gavetas e caixas objetos que pudessem colaborar para um recomeço bonito. Achou no fundo de um armário um saco de sementes de girassol aberto. O que faz isso aqui se não temos nem somos passarinhos?, resmungou. Aproveitou e plantou algumas em copos descartáveis. Brotariam logo e encantariam os meninos. Estranhamente, os filhos seguiram adormecidos até a ceia, quando Ana decidiu chamá-los para celebrar. Nenhum deles acordou para a noite feliz, haviam se terminado com o mundo. Tudo bem, conformou-se Ana, prestes a dar à luz novos girassóis.           

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Andréia Alves Pires
Nasceu em Rio Grande, cidade ao sul do Rio Grande do Sul, é jornalista, mestre em história da literatura e autora do livro de contos De solas e asas. Integra o Coletivo Fita Amarela, colabora semanalmente com contos ao jornal Diário Popular e publica o que escreve, em primeira mão, no blog www.desolaseasas.blogspot.com.
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