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quinta-feira, 26 de dezembro de 2013


O morto que eu sepultei

O cemitério que mora em meu peito tem se ampliado. Na última década, os moradores aumentaram sobremaneira. Meus avós, meu pai, três tios, quatro primos e muitos amigos passaram cá para dentro. Mas devo reconhecer: nenhuma chegada me doeu mais que a do meu marido. Eu imaginava chegar à velhice ao lado daquele a quem me entreguei em matrimônio; por isso, seu passamento significou mágoa severa demais, praticamente um desespero de solidão que latejava dia e noite.

Meu luto durou forte até ser substituído por algo muito pior: o remorso por ter sentido tanto amor equivocado, o pesar por haver crido ingenuamente, o arrependimento por haver cumprido fidelidade. Descobri a traição bem depois que o meu esposo morreu e vi nisso uma grande injustiça, porque a situação me negou a chance de matar o judas. Não pude dar ao crápula uma vingança apropriada.

Diante de provas irrefutáveis da transgressão cometida por meu amado marido — e certamente só freada por conta de ele haver defuntado —, pensei em também dar fim à vida. Quem sabe assim resolveríamos tudo no inferno? As opções que me apareceram foram: 1) matar a namoradinha; 2) matar a cornuda, isto é, suicidar-me; 3) cometer homicídio seguido de suicídio; 4) revolver as terras onde o cônjuge está plantado para lhe pedir explicações. Depois de melhor refletir, percebi que nada disso era de bom senso. Viúva traída que se preze não sai por aí agredindo cadáver ou acertando contas com a amásia do presunto. Achei por bem abrandar a pena dos meliantes e sair do precário estado autocomiserativo. Preferi despir-me do luto fechado e começar as buscas por um novo amor.

Quando Leôncio se foi, muitos colegas e familiares demonstraram carinho e principalmente pena por esta mulher que de súbito se assozinhara. Nas entrelinhas do que me diziam, aparecia o seguinte discurso: “É muito difícil uma mulher de quarenta arrumar outro homem bom para casar”.

Por algum tempo, as pessoas me viram lacrada. Todo o viço calara em mim. Uma mulher realmente cerrada eu me tornei. Cabisbaixa e melancólica, esqueci qual sexo eu tinha. Meu sangue mensal até cessou, depois que Leôncio sofreu aquele acidente de carro fatal. O melhor marido, o melhor pai, o melhor amante... aquele homem não existia mais no mundo dos vivos. E eu recordava cada detalhe de nossa história e até a maneira como Leôncio me olhava e me amava. Um segredo: sobre o colchão, durante as delícias, ele não gaguejava! Doce marido que a morte ceifara tão cedo...

Foram três anos sob um véu espesso de dor, até que veio à tona o caso de Leôncio com sua bela amante, Jéssica. Descobri os tais fatos dolosos: sempre nas nossas visitas à Vó Leila, durante as férias em Petrópolis, ele fazia segundo turno com a minha prima. Durante quinze anos de casamento, todo janeiro e todo julho, fui traída pelas duas criaturas. Os delatores, dois primos meus, esperaram a vovó morrer para me contar os sebosos pormenores. O casal se deitava num quartinho dos fundos, sem o menor constrangimento.

Pontofinalizei o luto assim que decidi por não me matar nem à Jéssica. Ergui a postura, ajustei as roupas, voltei a tingir os lábios, virei mulher de novo. Foi uma ressurreição sensacional, aplaudida por muita gente. Rapidinho, passei a receber cantadas no trabalho e nas saídas de happy hour. Ganhei flores, cartões, convites para festas, joias... Tornei a beijar demorado e a me agarrar com o Reginaldo, um homem bonito, inteligente, dicção perfeita. Experiência redentora, que apagou o gosto e o cheiro daquele tartamudo duma figa. Meus filhos, já adolescentes, até se prontificaram a sair de casa vez ou outra para deixar a mãe namorar com privacidade.

Não aceitei me atarraxar por completo, se é que você me entende. Quando Reginaldo propôs uma aproximação tipo boas entradas, não aceitei assim de primeira. Apresentei-lhe a condição única: “Tem de ser em cima do túmulo do Leôncio”. Ele tentou me dissuadir com palavras lambidas, mas não cedi. Foi embora todo sentido, afirmando que nem todo o desejo do mundo o faria passar por isso.

Depois de Reginaldo, busquei envolvimento com um rapaz mais jovem, curtidor radical da vida: surfista, alpinista, lutador de jiu-jítsu. Pensei que aquela adrenalina toda se canalizaria bem para desembocar no meu almejado encontro amoroso no cemitério. Quando lhe propus uma primeira noite deliciosamente sepulcral, ele topou de pronto, num ânimo aventureiro. Mas foi só chegar à porta do campo-santo, que o homem murchou.

Heitor e Mário também não aceitaram me amar sobre o túmulo. Saíram em defesa da memória do defunto, argumentando que era desrespeito com aquele lá. O jeito, então, foi estancar precocemente o romance; porque comigo só ficaria quem me satisfizesse de prazer e vingança, quem me permitisse o mais perfeito gozo-desforra.

Foi Alfredo que me brindou como eu merecia. Preparamos a noite ideal: lua cheia, clima agradável, quinta-feira doze, espumante, taças, morangos, leite condensado, castanhas, queijo suíço, música de sussurro rouco, espuma maleável e roupa de cama em seda. Salpicamos pétalas de rosas vermelhas sobre a cama que se sobrepunha ao jazigo e esperamos a meia-noite, quando mais nenhum vivo transitasse por ali.
Experiência sublime! O céu se abriu novamente. Voltei às atividades em grande estilo, após haver padecido de viuvez e despeito mórbido.

Depois de amar Alfredo, as velas se apagaram de repente. Ouvi um soluço baixinho, que parecia vir de dentro da cova. Tatibitate. Era o lamento de Leôncio.

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3 comentários:

Adorei! Que vingança, hein! O soluço foi o arremate perfeito. Excelente e bem-humorado conto.

E os restos de Leôncio ainda tiveram de suportar o peso dos corpos vivíssimos da silva... Rs! Que delícia de leitura! Amélia Elói, o seu jeito de contar me agrada demais! Sempre, sempre, sempre vale a pena!

Gostei demais, Amélia. Crônica bem humorada, pra lá de boa. Parabéns!

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