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domingo, 15 de dezembro de 2013

nativitas



Afonço.

Assim escrito. Tal e qual.

Traria a pele engelhada e os lábios roxos, e nem teria tido o tempo de secar a tripa mal atada no ventre desagasalhado.

Afonço sem qualquer apelido acrescentado ao nome.

Nem isso, nem outro modo que lhe dissesse de pai ou de mãe.

Simplesmente, Afonço.

No assento de ter sido baptizado, diz que foi padrinho um tal Francisco Cortes. Baptizava todos, esse sacristão.

Seria a pobreza tanta que nada sobrava para mais um outro. Ou seria o pai morto, ou o pai preso ou desconhecido.

Ou seria o pai um a quem nem pensar em alumiar-lhe o nome.

Ou seria a mãe senhora de recato.

Fosse como tivesse sido, foi Afonço abandonado ao frio de um mês de Dezembro.

E nem o teriam colocado ao peito para que o leite não subisse.

Tome-o e dê-lhe de nome Afonço. Dizia no bilhete.

O menino trazia cosido no cueiro já com uso, um bilhetinho amarfanhado.

Um bilhetinho escrito numa letra tombada. Uma letra analfabeta a pedir: baptize-o que não houve o jeito de fazê-lo, antes. E que Deus lhe dê o devido pago.

Afonço que traria a tripa ainda verde. Que ainda cheiraria a ventre e a sangue. Abandonado por aí, onde quer que o tivessem parido. Ou onde alguém desse por ele e o criasse. Ao menos lhe desse a caridade de o fazer baptizado. Um poial de casa, um adro de igreja. A porta de um convento. A roda a ranger, escura e pesada, pela calada de uma noite.

Outros, muitos, tantos, como Afonço, abandonados. Num ermo, tantas vezes. 

Poucochinhos os que terão chegado a homenzinhos. Não ele que faleceu no mesmo ano em que foi baptizado.

Sabe Deus de que morreu Afonço. De que morreram tantos. Meninos que só tinham um nome.

Ficou decerto o céu repleto de anjos.

       

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3 comentários:

Curto e sensível. Como a história de tantos. Como é que pode você captar tão bem o que acontece com esses pobrezinhos? Eu me emociono com tudo o que envolve crianças, miséria humana e abandono. Texto de uma sensibilidade extrema.

Comovente. Não é simples falar de uma coisa tão corriqueira e desumana. Bom texto. Parabéns.

Cinthia Kriemler já disse: "Curto e sensível. Como a história de tantos". Adriane dias bueno também: "Comovente". E se o assunto nos recorda hábitos de enjeitar num passado recente, marca também uma realidade do presente. O texto, a escrita? Boa, como sempre.

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