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segunda-feira, 10 de setembro de 2012

O doutor "adevogado"


Henry Alfred Bugalho

O doutor apareceu pela primeira vez em casa numa noite de sábado, entrou, acomodou-se na sala e acendeu um cigarro. De terno, gravata e gel melequento no cabelo, e, de quando em quando, cofiava o bigodinho a la Clark Gable.
Minha mãe, cheia de sorrisos, desapareceu no quarto para os preparativos finais, enquanto eu o espiava desde a penumbra do corredor.
Muitos homens haviam passado por aquele sofá nos últimos meses, muitos mesmo. Minha mãe parecia desesperada em encontrar um substituto para meu pai, e errava de senhor em senhor, crente que algum deles aceitaria uma viúva com um pirralho na barra da saia, e nos levaria para morar em algum casarão ou numa cobertura de luxo.
Ao escutar o ruído da gaveta da penteadeira se fechando, corri para minha cama e me cobri, fingindo que dormia. Mamãe veio, beijou a minha testa e me desejou boa-noite.
— Vou sair para dançar, mas não volto tarde.
Uma lagrimazinha escorreu, mas ela não deve tê-la visto. Eu me sentia tão fragilizado sozinho naquele apartamento. Bastava que ela saísse, trancando a porta atrás de si, que era como se todas as proteções ruíssem e eu houvesse sido lançado para a morte certa. A noite era silenciosa e assustadora. Cada estalo nos móveis, cada ranger de porta, cada goteira, cada assovio do vento ou miados de gatos nos telhados vários eram perigos mil. Agora todos os bandidos, psicopatas e assassinos à solta pelo mundo farejariam o meu medo e viriam me pegar. Eu estava só e desprotegido, simplesmente porque a minha mãe baixota e magrela não estava por perto.
Ela também deveria se sentir desamparada e justamente por isto que ansiava tanto por um novo marido. Um macho para controlar o lar. Um braço para proteger-nos tanto a ela quanto a mim.
Nada aconteceu, nenhum criminoso perigoso veio. Dormi, para despertar apenas com o barulho do trinco e do toc-toc do salto alto de mamãe nos tacos da sala.
Pela porta entreaberta do meu quarto, chegou até mim o odor de perfume e cigarro, e os passos descompassados denunciavam que ela deveria estar bêbada. Quis me levantar, mas tive medo. Mamãe ficava imprevisível quando bebia, e podia sobrar para mim, que nada havia feito de errado.
Demorei muito para voltar a dormir, escutando-a tomando banho e depois se jogando na cama. Tive muita pena dela, desejei que papai não houvesse morrido tão novo. Odiei a morte, tão cruel e injusta!
Naquela noite, tive certeza que não veria mais aquele sujeito de terno, gravata, gel e bigodinho ridículo, mas, no domingo seguinte, assim que saímos da missa, minha mãe se agachou e, mirando-me com ansiedade, disse:
— Vamos almoçar com um amigo meu. Quero que você se comporte. Jura pra mim?
Com o polegar, fiz o sinal da cruz sobre os lábios, e o doutor logo surgiu com um carrão, daqueles de magnatas. No banco de trás, eu brincava com o vidro elétrico, a primeira vez que via algo assim na vida.
— Não mexa, senão vai estragar! — minha mãe gritou, mas o senhor interveio:
— Deixe o menino... Não tem problema.
Mas preferi obedecer minha mãe, a autoridade máxima, pois havia jurado que me comportaria.
Já no restaurante, fomos servidos e comemos em silêncio.
— O doutor Orlando é adevogado — disse minha mãe com toda a pompa, adicionando uma vogal como ela sempre fazia quando queria ressaltar a importância de algo: papai havia sido o pisicólogo e minha tia era uma adiministradora.
— E você protege os bandidos? — perguntei, lembrando-me de um filme de tribunal que havia assistido na noite anterior.
— Não — riu o doutor Orlando — a minha área é Cível, não Criminal.
— Ah — balbuciei, sem entender palavra, sendo fulminado pelo olhar repreensivo de minha mãe. Mesmo assim, admirei o doutor, de terno até no domingo, dia santificado de descanso. Devia ser importante e poderoso, trabalhando até em finais de semana.
Voltei a ver o doutor adevogado em outras ocasiões e ele reapareceu lá em casa, corretíssimo no sofá da sala, cigarro na mão e bebericando uma taça de licor.
— Mãe, você vai casar com o doutor? — perguntei uma noite.
Ela sorriu com acanhamento, mexendo no cabelo.
— Não sei, querido... Ainda não decidimos.
— Será que papai aprovaria?
— Acho que sim... — ela se engasgou, talvez com vontade de chorar — Ninguém nunca será como seu pai, mas a vida segue adiante. Não temos escolha.
— Queria tanto que ele ainda estivesse aqui.
— Eu sei.
Então, o doutor Orlando se tornou uma presença habitual. Dormia com minha mãe e eu podia até escutá-los rindo e gemendo no quarto dela. Tive ciúmes, raiva e desejei que, na manhã seguinte, eu despertasse já adulto, para pegar minhas trouxas e cair no mundo, sem ter de presenciar estas sem-vergonhices. O que meu pai diria?
Por outro lado, fascinava-me muito o doutor, tão fino e imponente. Cheguei até a sonhar em tornar-me um advogado quando crescesse, de terno, gel, cigarro e bigodinho. E quando isto ocorresse podia até visualizar minha mãe dizendo para os outros, cheia de orgulho de mim:
— Meu filho é um baita adevogado! Dos melhores!

Uma gritaria me despertou certa manhã.
Minha mãe discutia com o doutor Orlando, chamando-o de crápula, pústula e cafajeste. Ele retrucou à altura e saiu batendo a porta.
Transtornada, ela entrou em meu quarto e foi direto até o armário, de onde apanhou uma mala e nela lançou minhas roupas.
— Que foi, mãe? — cocei os olhos.
— Pegue suas coisas... Já!
Ela também arrumou as bagagens dela e, puxando-me pela mão, levou-me até a rodoviária. Sentada no portão de embarque, ela desabou a chorar, sem me explicar nada.
Meus avós nos receberam na casinha no interior e mamãe se trancou no quarto por dias, saindo apenas para tomar banho e beliscar o almoço, mal dizendo um ai.
Fui eu quem a encontrou inerte no chão gelado do banheiro, frasco vazio de comprimidos na mão. Pálida, lábios arroxeados, sem respirar.
O doutor Orlando, o ilustre advogado, não havia roubado somente os nossos bens, o apartamento, o carro e a poupança.
O que ele me tirou jamais poderei reconquistar.


Henry Alfred Bugalho
Formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em Estética. Especialista em Literatura e História. Autor dos romances “O Canto do Peregrino” (Editora Com-Arte/USP), "O Covil dos Inocentes", "O Rei dos Judeus", da novela "O Homem Pós-Histórico", e de duas coletâneas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fundador da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia Nova York para Mãos-de-Vaca”, cidade na qual morou por 4 anos. Está baseado, atualmente, na Itália, com sua esposa Denise e Bia, sua cachorrinha.

http://www.henrybugalho.com/

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6 comentários:

Credo, Henry! De tão doído chega a fechar a garganta! Quantas histórias assim não existem? Ilusão, solidão, desespero, desistência. E uma criança pagando a conta. Fim da infância. A frase final é irretocável, forte, completa. Triste e belo texto.

belíssimo texto! escrita que a gente bebe, sorve...nem sente que está lendo, nem que é letra, ponto vírgula, palavra... o que a gente está em andando pela casa, sofrendo o que cada um sofre ou alegra...
mas porra, Henry que drama eu fui ler logo pela quase madrugada! :)

Este comentário foi removido pelo autor.

“O poeta é um fingidor” e o escritor também, espero eu. Espero que este texto seja um texto na primeira pessoa apenas para ganhar ambiente de facto ocorrido. Mas os pormenores são tão miúdos que ganham verosimilhança de coisa ocorrida. Ou a coisa aconteceu ou você está num patamar literário bem alto. O mais provável é que você tenha misturado uma ficção com alguma reincorporação na situação indefesa de criança. O resultado é excelente.

Às vezes uso a primeira pessoa para obter ilusão de descrição de um acontecimento real. Quando falo de alguma experiência pessoal vivida, geralmente uso a terceira pessoa. Escondo-me. Mas não tenhamos ilusões, o leitor sempre achará que as histórias que o escritor conta são aspetos biográficos.

Abraço!

Obrigado pela leitura e comentários, Cinthia, Fátima e Joaquim.

Felizmente é ficção, Joaquim, mas, citando uma frase do romance que estou escrevendo: "toda obra é, de alguma maneira essencial, uma autobiografia."

Abraços.

o outro comentário apaguei pq saiu em duplicado :)

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