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sábado, 4 de fevereiro de 2012

O grande feitiço de Machado






Tatiana Alves
Há autores cuja importância se restringe à época em que viveram. Durante a vida, são renomados e reconhecidos em seu meio, mas vão sendo esquecidos com o passar do tempo; escritores dos quais gerações posteriores sequer ouviram falar. Há outros, ao contrário, que só parecem ter seu mérito reconhecido a posteriori. Muitos chegam mesmo a morrer na miséria – Edgar Allan Poe e Luís de Camões constituem exemplos disso –, tendo no reconhecimento póstumo a sua forma de permanência. Muitos se eternizam dessa forma, sem terem, no entanto, desfrutado em vida dos louros advindos de seu talento.
Há um terceiro grupo, contudo, daqueles que não apenas tiveram a capacidade de se inscrever de forma grandiosa em seu tempo / lugar, como deixaram à humanidade um valioso legado, inegável e pleno, alçando-os à condição de clássicos. É a este grupo que pertence Machado de Assis.
De infância pobre e origem mestiça, em uma época regida por valores deterministas, seu triunfo como escritor já valeria por si. Mas o Bruxo do Cosme Velho foi muito além das ruas do Flamengo e de suas adjacências, tão habilmente retratadas em sua obra. Ousou mergulhar na alma humana, revelando seus desvãos mais sombrios e inescrutáveis, e talvez aí resida o seu maior mérito: é universal e atemporal, como universais e atemporais são as angústias e meandros da psique humana.
Considerado por muitos o maior nome da Literatura Brasileira, dividindo preferências apenas com Guimarães Rosa, Machado registrou, com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, um retrato sombrio e mordaz da sociedade de sua época, numa acuidade que revela a eternidade das recônditas paixões humanas.
Capitu, sem dúvida a mais enigmática de suas criações, mostrou ao mundo, com seus olhos de cigana oblíqua e dissimulada, o quanto uma mulher firme e decidida poderia amedrontar um rapaz casmurro, inseguro e desconfiado. Desdêmona oitocentista, constitui uma das maiores incógnitas da ficção brasileira, sendo a dúvida que paira ao redor de sua figura o traço-chave de sua complexidade. Com a criação da Humanitas,filosofia defendida pelo personagem Quincas Borba em outra de suas deliciosas narrativas, o narrador machadiano desvela ainda os males de uma sociedade em que a guerra se faz necessária à sobrevivência, ainda que esse embate na maior parte das vezes se dê de forma velada. Compaixão ou batatas, eis a questão.
Nessa galeria de personagens que, de tão presentes, parecem íntimos de quem se embrenha pelas trilhas machadianas, o que não dizer da misteriosa e fatal cartomante, talvez a desencadeadora de toda a tragédia em que mais uma vez o ciúme e a paixão entram em cena, denunciando a fragilidade humana? Tornamos-nos ragazzi in amore, seduzidos e iludidos pela pena do mestre que conduz o leitor, fazendo-o constatar, como Simão Bacamarte, que a pretensão de não ser louco talvez signifique ser mais louco do que os demais, sendo a Casa Verde pequena para a doentia e complexa psique humana.
 Mas foi talvez pelo olhar do defunto-autor que a sua representação de mundo tenha sido mais eficaz. Ao analisar a vida pelos olhos de um morto, conferiu ao olhar a neutralidade necessária, numa vereda insólita que ninguém até então ousara palmilhar. Parodiando Brás Cubas, que se considerava afortunado por não ter tido filhos, não tendo, desse modo, transmitido a ninguém o legado de nossa miséria, mestre Machado deixou-nos uma valiosa herança, inscrevendo-se no panteão dos maiores nomes da literatura universal.


Tatiana Alves é poeta, contista e ensaísta. Participou de diversos concursos literários, tendo obtido vários prêmios. É colaboradora da Coluna Momento Lítero-Cultural, dos sites CronópiosAnjos de Prata, Germina Literatura e Escritoras Suicidas. É filiada à APPERJ e à Academia Cachoeirense de Letras. Possui seis livros publicados.  É Doutora em Letras e leciona Língua Portuguesa e Literatura no CEFET / RJ.

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4 comentários:

Além de um texto em português tão bem escrito,uma análise breve, mas contundente do grande Machado. Sou apaixonada por ele, pela sua obra. E embora tenha encontrado em A Mão e a Luva uma das melhores reflexões sobre as relações homem-mulher — não há ideal em tais relações, mas apenas e tão somente o interesse e o encaixe perfeito de necessidades — seria difícil saber qual Machado é o melhor, o que ausculta ou o que revela cruamente homens e mulheres nunca antes descritos daquela forma.Mas isso tudo é momento, e Machado é eternidade. Eternidade que você registrou com o talento da justiça. Parabéns! Foi um prazer ler seu texto!

parafrasear a Cinthya, seria escusado, mas ainda assim digo porque nem é frequente: que bom ver o português escrito além mar de modo tão bem escrito neste texto!
Machado que aprendi a ler já tarde na minha vida de leitora, mas em boa hora!
de tanto relembro sempre O ALIENISTA e o seu impagável Simão Bacamarte

Machado de Assis é um dos grandes autores de língua portuguesa e o maior do Brasil, inquestionavelmente. O Dickens brasileiro, criando um rol de personagens memoráveis, com um humor incrível e com uma linguagem, mesmo passado um século, ainda bastante acessível para o leitor atual.

Abraços.

Muito obrigada pela leitura e pelos comentários. Falar de Machado é falar da Grande Literatura.

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