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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Aos perdedores, as cascas




(por Ramon Barbosa Franco)


Dedicado a Machado de Assis

Joaquim sentou na varanda e solicitou calmamente para o mordomo uma banana. Descansou numa cadeira. Era tanta informação girando em sua mente que mal conseguia respirar. Retirou um dos sapatos que apertava-lhe os pés e reviveu a sensação de alívio e conforto. Olhou a carta, que concentrava informações cabais. Ficou na dúvida: onde poderia jogar a casca da banana que acabara de receber do mordomo?
Rememorava os fatos e pensava, enquanto descascava a fruta, o quanto gostava de comer banana: a doce do paraíso. ‘Como gosto de bananas, pena que sempre desperdiçamos a casca’, analisou. ‘A casca se joga fora’, respondeu para si próprio. Depois, ficou repetindo mecanicamente a palavra casca. ‘Casca, casca, casca, casca, casca, casca, casca. Isso! CAS-CA! Casca!’
Se antes lhe faltava coragem para decidir em qual local daquela imponente varanda ficaria depositada uma simples casca de banana, agora Joaquim não hesitava em se desfazer completamente da fruta.
Voltou com fôlego para a sala.
- Co-comissrio! Co-comissário! - e chegando no cômodo - Co-comissário prenda-da Isaac ne-neste e-exato momento! Pren-prenda Isaac ago-go-ra! Fo-foi e-ele, fo-foi e-ele que-quem assa-ssissi-nou Elza, su-sua irmã gê-gêmea! Co-como gê-gêmeos, Isaac só era di-di-diferente de Elza no gê-gênero masculino. Por de-dentro, bem... Por de-dentro e-eram gê-gêmeos i-i-idênticos! Su-sua pederastia latente-te proporci-o-o-onava a inve-ve-ve-ja fatídica e de-desumana! Inve-ve-ve-ja que acabou com a vida de Elza. Aqui, se-senhores, na referida e supo-po-posta carta anônima e ameaçadora, que chegou até a vi-vitima, concentra a se-sentença co-contra Isaaac! O próprio assa-ssi-ssino se-se entregou neste documento ardiloso!
Todos na sala ficaram perplexos.
Até então Isaac demonstrava colaboração com as investigações. De fato, recusou a vinda do escritor e até mesmo alegou certa falta de concentração para evitar escrever o bilhete que solicitava a presença do autor renomado.
Com as palavras de Joaquim, as evidências começaram a ficar claras, principalmente para os familiares que acompanhavam o desfecho daquele assassinato. Eles passaram a reviver situações onde realmente Isaac colocou prova a disputa direta com a irmã, contrariando todos os votos de felicidades que os gêmeos mais afortunados da sociedade carioca receberam quando vieram ao mundo, há três décadas.
- Senhores, senhoras e meus queridos parentes: não caiam na ambiguidade deste falsário! Deste canalha metido a escritor! Vejam, até hoje ninguém aqui do Rio de Janeiro, ou de qualquer parte deste quinto dos infernos, soube precisar se a jovem traiu seu esposo naquela trama imoral e imprópria inventada por este mulato exibido. Este gago epiléptico. Ele mal consegue falar! Você, seu Joaquim Maria não passa de um molambo! Gago insolente! Epiléptico maltrapilho! Eu não matei minha irmã e nunca fui pederasta, como supõe este filho de lavadeira!!!
O escritor ouviu com dor os insultos me, falecida há tantos anos. Porém teve calma para o debate:
- Triste sorte do insensato-to! Filho de lavadeira-ra sim se-senhor e com muito orgulho. Ela não me deixou réis, mas dignidade. Agora vo-você Isaac, se-se traiu, a co-come-começar pelo olhar inquisidor que dirigiu a mim no mo-momento que o liberto me abriu as po-portas deste casarão. Das mãos do co-comissário pude ler claramente que o recado que ele traz consigo foi assinado pelo guarda-livros Paulo, o me-mesmo que me dirigiu este que guardo em meu bolso. Sendo o único curador dos Barroso, eras tu o homem que deve-ve-ria assinar as co-correspondências e os co-convites de fu-funerais. Estranhei o recado assinado por Paulo, mas co-como sou um antigo amigo dos Barroso, e isto desde a época de mamãe e de papai, não relutei em vir ajudar nas inve-ve-stigações. Repito que você se traiu, principalmente por co-confessar que é leitor de minhas obras, apesar de considerá-las impróprias ou imorais, co-como disse. Nunca imaginei que um trecho de minha pro-produção literária um dia iria se-servir de prenúncio para a morte. Aqui, nesta nefasta carta, você cita para sua irmã o trecho do meu co-conto 'As Academias de Sião': ‘- E se eu lhe der um remédio a tudo’. Logo de-depois acrescenta de fo-forma odiosa: ‘Como gostaria de ter vivido em Sião. Tu poderás ir para lá’. Para quem ainda no co-conhece este meu trabalho em 'As Academias de Sião' relato a fan-fantasia de troca de sexo. Isaac você gostaria de ter nascido mu-mulher. Por isso que arquitetou o homicídio. Co-comissário pre-prenda-o.
Joaquim sentou e fixou o olhar no marido de Elza. Era ele quem agora reprovava o escritor. O Comissário nem se mexeu. Continuava atônito com as revelações daquela noite. Foi após um silêncio de alguns minutos que Leopoldo, o esposo de Elza, numa atitude inesperada passou a insultar o escritor carioca:
- Não são provas para incriminar meu cunhado! Bem que ouvi sobre suas aspirações, Joaquim! Como alega, seu gago insolente, que um Barroso tenha matado outro Barroso? Falácias, são meras falácias sem qualquer comprovação! Dá até angústia em ouvir este homem falar, este negro exibido! Gago presunçoso! Sempre preferi, e prefiro, a literatura de Raul Pompéia, o grande Raul Pompéia que, infelizmente, já nos deixou. O seu magnífico 'O Ateneu' supera toda a produção deste filho de lavadeira!
Como que despertando de um sono, o Comissário proclamou:
- Guardas: prendam Isaac e Leopoldo! Os dois são comparsas na engenharia maliciosa deste crime! - e, se dirigindo para Joaquim - Obrigado por clarear a mente deste velho policial, mas, pelo amor de Deus, homem, cuide desta gagueira. Tente algum tratamento.
Antes de sair na companhia dos guardas que levavam os dois presos da noite, o Comissário cochichou ao ouvido do escritor:
- Percebi quando Leopoldo lhe lançou um olhar mortífero e cruel, notei o ódio dele. Um caso de pederastia assassina, motivado pela fortuna dos Barroso. Vai ver que Leopoldo era, na verdade, o 'marido' de Isaac. De certo, os dois se conheceram num colégio interno, já que ele falou tanto do livro de Pompéia.
Em tom de confidência, o escritor respondeu também ao ouvido do Comissário:
- Aos per-perdedores-res, as cas-cascas! Cascas!

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