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terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Ceia de Natal

José Guilherme Vereza

Desconfiou que atrás daquela barba falsa e das bochechas rosadas havia muito mais que um Papai Noel de shopping. Morgana espremeu-se entre as crianças que faziam fila para tirar foto, até que, ao chegar sua vez, ficou intrigada com a origem daqueles olhos verdes estonteantes. Sem cerimônia, sem medo de parecer ridícula, sentou-se na perna direita do Papai Noel, passou o braço atrás dos ombros vermelhos e aveludados,
e encostou rosto com rosto para uma foto. A barba de fios artificiais fez cosquinha no seu nariz. E Morgana mandou entre os dentes sorridentes, olhando para a câmera para não perder a pose:

- Te conheço de algum lugar.
- Sou Papai Noel. Você não acredita?

As mães aflitas da fila não deram chance ao diálogo. Crianças impacientes. Olhares indignados. Pulando sacolas e pacotes, Morgana saiu de fininho, deixando um rastro de olhar para os olhos verdes de um Papai Noel igualmente embevecido.

….

Morgana Amaral. 33 anos, recém descasada, sem filhos, ainda às voltas com a arrumação do flat para onde acabara de se mudar. Como uma gata em beco novo, tudo experimentava até encontrar seu aconchego. Tão logo se separara de um marido monótono e possessivo, deu seu grito de solteirice. Sentiu-se de bem com a vida, auto estima lá em cima, revigorada e energizada. Homens variados - e selecionados -
batiam à sua porta. A cada semana uma novidade. Um gemido novo, um calor inusitado, um gosto de aventuras na língua, sussurros diferentes no pescoço, visitantes pulsantes nos seus interiores. Até cansar.

- Chega. Pelos menos neste Natal, quero ficar sozinha.

E saiu por dezembro a curtir sua solidão. Despiu-se das ansiedades, dos planos, dos projetos de vida nova. Exceção para o que seria a ceia do dia 24 na casa dos pais velhinhos, ele cadeirante de boca torta, a mãe faladeira e prestativa,
rainha dos fornos e fogões dos rituais familiares, além da tia agregada e surda, estridente entusiasta de cânticos natalinos. E assim aconteceu. Cheiro de tender no ar, o calor de derreter miolos, o peru com farofa à mesa, o empadão de bacalhau de receita centenária, o prosecco que poderia estar mais gelado, o amigo oculto decepcionante - este ano não teve livro de Rubem Fonseca -, sobrinhos furiosos rasgando presentes, irmã estressada, cunhado de cara cheia e inconveniente.

- E aí, Morganinha, como é seu primeiro Natal sem o chato do seu ex marido?

Bom sinal para ir embora. A chuva molha os presentes e o papel que envolve o prato da rabanada que sobrou. Morgana entra no carro e parte pelas ruas cintilantes para sua primeira noite de Natal sozinha depois de quase oito anos.
Sensação esquisita. Nem boa nem má, mas diferente de tudo que viveu ou planejava viver. E antes que caraminholas assaltassem seus pensamentos, dormiu no sofá,
embalada pelo prosecco que deixara para gelar e pela reprise do Roberto Carlos na Globo.

….

Blim blom.

- Que diabo! Numa hora dessas?

Trôpega e sôfrega, Morgana abre a porta sem cuidado. Pisca sem parar, dá tapinhas no rosto, olha de novo.
E paralisa.
Atrás daquela barba falsa e da bochecha rosada havia muito mais que um sujeito vestido de Papai Noel que errou de porta. A barriga entreaberta de enchimento e fingimento mal esconde um tanquinho másculo, bem definido e sarado. Os olhos verdes estonteantes fuzilam. O sorriso lindo dá o tiro de misericórdia.

- Ho, ho, ho!
- Desculpe, deve haver algum engano, o senhor não errou de porta?
- Perdi a chave do meu flat, bem aqui ao lado do seu. Eu só queria pular da sua varanda para a minha.

Morgana soltou uma gargalhada interior. A ficha caiu. Seus olhos brilharam ao lembrar os olhos verdes do vizinho eternizados num único encontro no elevador semanas atrás. Sua voz foi firme e cuidadosa. A gata encontrava seu aconchego.

- Isso pode ser muito perigoso, Papai Noel. O senhor não está mais na idade de pular de varanda em varanda. Vem, amanhã a gente arranja um chaveiro.

Nada mais se disseram. Naquele instante, trocaram de fantasias.
Ele despiu-se ali mesmo, espalhando a roupa calorenta pela sala, entre caixas de mudança, um prato de rabanada na cadeira, casquinhas de nozes no sofá e uma árvore colorindo a noite de luzinhas intermitentes. Ela vestiu um sonho travesso.
O feliz Natal, enfim, pleno de celebrações, surpresas e delícias noite adentro,
estava apenas começando.

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
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