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quarta-feira, 19 de maio de 2010

O Retrato como Género


Joaquim Bispo


Um retrato é entendido como a representação fidedigna, em duas dimensões, do retratado, e vive essencialmente da representação do rosto. É preciso que o desenho do contorno do rosto, e dos seus outros muitos elementos, represente fielmente o rosto vivo, como a luz do sol projecta o perfil de alguém numa parede lisa. Fica, portanto, excluída a caricatura, que faz lembrar o visado, pelo exagero de algumas características mais marcantes, mas não devolve a semelhança com o original. É preciso que pareça tão real como o verdadeiro, que pareça que “só lhe falta falar”. Que pareça vivo. O pintor consegue levar a mudez até à fronteira iminente da fala. «A vida do retrato é, no fundo, a razão última da semelhança com o original». Pretende-se suspender o tempo, manter o retratado no momento escolhido, muitas vezes num tempo que contém os afectos que se querem preservar da morte. Pretende-se construir um tempo que sobreviva à passagem do tempo. A fixidez do retrato constrói esse tempo eterno.



No entanto, essa fixidez inevitável é um obstáculo à representação infinitamente mutável da expressão, sendo esta a comunicação do que realmente é vivente – o espírito.
Então, a semelhança acontece quando a imagem consegue fixar alguma característica representativa do espírito do retratado? Para isso, seria preciso conhecê-lo previamente, quando não, a fidelidade só podia ser legitimada a posteriori.

O retrato pretende conservar a memória da pessoa amada ou admirada, preservar de si algo mais que o nome e a recordação, que não existirá para vindouros que não a conheceram. O nome é o seu sinal puro, o retrato o seu sinal mediado. O que é dado de si ao espectador é o que este traduz, pelas várias tabelas subjectivas que usa, condicionadas pelo fisiológico e pelo social. «Nunca se olha para um rosto com indiferença». O que se apreende é uma tradução tanto mais falsa quanto menos se conhecer do sujeito e do seu mundo, pessoal e de relação.

Ainda que se esteja atento a esta limitação, não se pode esquecer que o retrato é já, ele próprio, uma tradução feita pelo artista. Até que ponto ele conhecia o retratado, e que grau de virtuosismo detém que o apetreche para transmitir esse conhecimento de base, ou intuído aquando do trabalho de pintura? E que faceta apresentou o retratado ao pintor? Qual o verdadeiro retratado: o que se expôs à pose; ou aquele que só a si próprio se revela nos momentos de retiro íntimo?

O retrato, com todas estas limitações de rigor de comunicação, detém, no entanto, muito prestígio no prolongamento da memória e na revelação da personalidade retratada. «A grande dificuldade, qualquer que seja a concepção adoptada, vem da dupla natureza do referente: uma representação de uma representação». O rosto não é uma imagem estática e plena, «apenas um lugar onde tudo se inscreve e de onde tudo foge». Através da imensidão plástica da fisionomia, atravessada permanentemente por uma flutuação de formas, «o rosto esconde, reenviando para uma última instância “interior”». Qual será, então, o modelo autêntico?

A fidelidade à verdade do referente exige copiar o modelo invisível. «O trabalho do artista consistirá em restituir, numa imagem visível, o modelo invisível». Por isso, é preciso uma arte para olhar a superfície de um rosto e captar o invisível ao nível da face. «Retratar não é, afinal, representar uma representação, porque o rosto não é uma imagem, mas um complexo de sinais e de forças em movimento que o puxam ora para fora de si (…) ora para dentro de si, fixando-o numa figura estática, humana, ilusoriamente una». «A representação, (…) como cópia da relação que liga o modelo originário à cópia sensível, não busca a semelhança ou a analogia de formas, mas o lugar topológico da génese da semelhança». O alvo que o pintor aspira atingir não é «o conjunto de sinais expressivos visíveis, nem o fundo informe invisível, mas a curva que desenha o contínuo das pequenas percepções.» «O que dá a ver o retrato é a forma de uma força: a forma invisível, mas extraordinariamente pregnante, da intensidade com que um rosto nos olha e que o nosso olhar acolhe». «Não se trata já, para o pintor, de assemelhar, mas do devir», das forças e intensidades que ele captou e às quais deu forma.

O retrato é uma ferramenta apetecida e utilizada pelas personalidades que gravitam na área do poder ou a isso aspiram. Ajuda a criar uma subjectividade que sirva os intentos do retratado. As alegorias ou os símbolos a que é associado, os objectos que o rodeiam, assim como toda a organização do quadro, induzem a subjectividade pretendida.

O surgimento da forma abstracta, abolindo o referente exterior, não serve as funções de perpetuação de memória da singularidade do homem, nem as funções de engrandecimento e legitimação do homem de poder. A arte abstracta matou o retrato, que foi substituído pela fotografia.

A unicidade de um rosto, com as suas peculiaridades de origem interna e externa, pode verter a sua verdade no retrato, mas «o retrato não é o rosto – é o nome do rosto». O retrato constrói uma singularidade paradoxal: dá ao rosto uma identidade, mas descodifica-o para além do traduzível. Não nos esqueçamos de que se trata da representação de uma representação. O original, não múltiplo, não representação, não existe – a primeira imagem é já uma multidão.


Resenha do ensaio do filósofo José Gil:

«O Retrato» in José Gil, et al, A Arte do Retrato: Quotidiano e Circunstância, Lisboa, FCG – Museu Calouste Gulbenkian, 1999.

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2 comentários:

De cada vez que tento expressar-me sobre Arte, involuntariamente faço-o sempre sob abordagens diferentes e as ideias resultam aparentemente distintas, dependendo muito da perspectiva em que no momento me coloco.
O retrato é a meu ver o resultado de uma "cumplicidade" que o retratista conseguirá (ou não)"roubar" ao retratado, da capacidade de interpretação do artista para além de uma requerida técnica apurada, do saber-se antes remontar mesmo que subjectivamente à própria génese ontológica de seu psiquismo e de seus ulteriores desenvolvimentos bem como eventualmente de sua transcendência espiritual, em suma, da capacidade de penetrar em sua mais profunda intimidade e logo de a plasmar em forma e emoção.

De cada vez que tento expressar-me sobre Arte, involuntariamente faço-o sempre sob abordagens diferentes e as ideias resultam aparentemente distintas, dependendo muito da perspectiva em que no momento me coloco.
O retrato é a meu ver o resultado de uma "cumplicidade" que o retratista conseguirá (ou não)"roubar" ao retratado, da capacidade de interpretação do artista para além de uma requerida técnica apurada, do saber-se antes remontar mesmo que subjectivamente à própria génese ontológica de seu psiquismo e de seus ulteriores desenvolvimentos bem como eventualmente de sua transcendência espiritual, em suma, da capacidade de penetrar em sua mais profunda intimidade e logo de a plasmar em forma e emoção.

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