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domingo, 9 de maio de 2010

A morte do Temerário


Corria tranqüilo o ano do Senhor de 1488. Na residência do arquiduque Maximiliano de Áustria em Bruges, os ares da primavera começavam a espantar o frio dos grandes salões. As lareiras ainda permaneciam acesas, mas a sensação de enregelamento já passara. Olivier de La Marche seguia em silêncio pelos amplos corredores, com o cuidado de quem já vivera por anos a mais do que o esperado.

Ao ouvir passos leves e apressados atrás de si, parou e virou-se. Mesmo com sua idade avançada, o treinamento de soldado que recebera em sua juventude não havia perdido efeito. Reconhecera com acerto o andar do seu jovem príncipe, filho e herdeiro do arquiduque. Ele não tinha o mau costume de correr dessa forma tão pouco adequada, muito menos atrás de seu preceptor e mestre de cerimônias de seu pai.

- Meu senhor e príncipe. Pergunto-me o que poderá ter acontecido, para provocar tanta pressa?

Ele parou, ofegante, olhando para La Marche. Quando finalmente recuperou o fôlego, fez o velho nobre francês ficar sem respirar.

- Mestre, como morreu meu avô?

Antes de responder, o velho servidor fixou o olhar nos traços delicados de seu pupilo. Tinha muito da beleza da falecida mãe, suavizando a herança facial tão marcante dos Habsburgos. A boca era ligeiramente entreaberta, o queixo também era típico da família paterna, mas não tinha a aparência de gárgula do pai e do avô, o imperador Frederico.

- Meu príncipe, não consigo entender a sua pergunta. Pois sabe muito bem que seu avô materno, Carlos da Borgonha, que Deus guarde sua alma, morreu ao tentar recuperar a cidade de Nancy que caira nas mãos de seus inimigos, os lorenos.

Ele balançou vigorosamente a cabeça.

- Sei disso, mestre. O senhor mesmo já me contou. Mas Luís de Cléves falou-me da história que corre na corte do rei de França. Entre os franceses, diz-se que meu avô morreu ao tentar fugir do campo de batalha, depois de ter sido abandonado por seus soldados. Ficou estendido no chão como se fosse um qualquer, o rosto devorado pelos lobos. E que o senhor, junto com outros de nossa Casa, só o reconheceram por uma cicatriz no flanco.

A cólera acendeu-se no coração plácido do velho servidor borgonhês.

- Que o Inferno carregue o degenerado e traidor que lança essas infâmias ao vento. Pois, por minha honra, o único ser sujo o suficiente para espalhar tais mentiras é Phelipe, que antes era de Commynes. Foi conselheiro do duque, seu mais leal servidor e abandonou a causa do nosso príncipe durante a noite, comprado que foi pelo infernal rei, pai do que está agora no trono. Traidores e perjuros, os dois, rei e servo. E agora, buscando as graças dos frívolos e sem honra, Commynes mancha a memória daquele que foi o seu legítimo senhor!

Acenando com a cabeça, o jovem indicou o acerto de suas palavras. La Marche pensou. Havia verdade no que haviam contado ao seu jovem pupilo. Todas as noites, ainda tinha pesadelos com a batalha de Nancy, o cativeiro depois da derrota e a humilhação de ser levado a reconhecer um corpo gelado e endurecido. Mas em momento algum Carlos havia sido abandonado por seus soldados, que lutaram por ele e por sua casa até o fim. Felipe sorriu.

- Eu sabia que era mentira. E que o senhor iria me contar toda a verdade, para que eu possa ensiná-la aos demais.

O que ele poderia fazer? Desmanchar as ilusões do menino, que tinha no avô materno, que não conhecera, um ídolo, em grande parte por influência do próprio La Marche?

- Venha comigo, meu príncipe.

Caminharam em silêncio até a biblioteca. Ali eram guardados os ainda ricos remanescentes da fabulosa coleção de livros dos duques da Borgonha, que antes ficava em Dijon. Nos áureos tempos do duque Felipe, bisavô do menino, quando La Marche ainda era jovem, dezenas de escribas copiavam manuscritos, que depois eram levados para as mais famosas oficinas de iluminadores flamengos, nas quais eram adornados com cores vivas e filigranas douradas. As obras que compunham a biblioteca refletiam o vasto conhecimento humano: os grandes autores clássicos, tanto em sua língua original, quanto em traduções ricamente comentadas, os poetas, os trovadores, os cronistas... um códice com os versos do duque de Orléans, escrito pelo mesmo. O nobre poeta era lembrado com carinho por La Marche, em memória dos tempos em que o então jovem escudeiro passara horas agradáveis conversando sobre a arte da escrita. Mesmo alguns volumes impressos nas prensas dos países do Norte já ocupavam lugar de destaque na biblioteca ducal.

Na sala pouco iluminada, La Marche vagueou entre os livros. Muitos eram de escritores seus conhecidos, autores que estiveram um dia a serviço da mais brilhante casa nobre de toda a cristandade. Seus olhos pousaram na tradução dos “Feitos de Alexandre o Grande”, do romano Quintus Curtius. Vasco de Lucena, o letrado português que traduzira e comentara a obra, em homenagem a Carlos, então herdeiro do ducado, havia sido um grande amigo do mestre de cerimônias.



- Mas também o tempo levou-te, Vasco. E só restei eu... – sussurrou, a voz embargada.

- Falou alguma coisa, mestre?

Acenou negativamente. Sentou-se perto da lareira e indicou uma cadeira ao jovem príncipe. Antes de começar, levantou os olhos para as pinturas penduradas. Deteve-se no retrato de Carlos, pintado antes de assumir o título ducal. Era tão jovem, deixara a vida tão cedo e de forma tão injusta. Prometera jamais mentir ao seu pupilo, e o senso de lealdade à memória de seu senhor falava alto. Respirou fundo e começou.

- Saiba, meu jovem senhor, que das armas da guerra, a mais desonrosa é a calúnia. E dentre as injúrias infundadas, o pior tipo é o que ofende os que já faleceram. Mas a verdade deve sempre aparecer, e irei contá-la a você. Naquele dia frio e desolado em Nancy, no inverno de 1477, fui levado perante um cadáver. Na minha frente, um corpo devorado por lobos, o rosto em farrapos, congelado, com cicatrizes recentes e uma mais antiga no abdomen. Eu disse aos franceses que aquele era o meu senhor e príncipe, o duque Carlos, o Ousado, a quem os franceses chamam até os nossos dias de “Temerário”. No entanto, o corpo que reconheci não era o do seu avô, pai de minha senhora e princesa, a falecida Maria, que Deus a guarde. Pois Carlos estava a muitos dias de viagem de Nancy, em peregrinação, na busca por um tesouro que o transformaria de direito no maior dos príncipes, o que ele já era de fato.

Os olhos do jovem arregalaram-se de espanto.

- Difícil de acreditar, não, meu jovem? Mas foi o que aconteceu. Meses antes da batalha de Nancy, o duque reuniu o seu conselho. Estavam presentes, além de minha pessoa, o chanceler da Borgonha Nicolas Rolin, o sábio português Vasco de Lucena, a duquesa Margarida e a jovem filha de meu senhor, ‘madame’ Maria, sua falecida mãe. Reunidos em um amplo salão, muito semelhante ao do castelo d senhor arquiduque, seu pai, ouvimos meu duque nos contar que havia achado entre os livros da grande biblioteca uma obra rara, que tratava das propriedades de todos animais. Como o grande caçador que era, interessou-se pelo livro e começou a ler. Nas páginas ricamente iluminadas, meu príncipe achou a solução para o problema que há muito o afligia. De todos os nobres cristãos, de todas as qualidades, ele era o mais poderoso, com cinco títulos ducais e inúmeras senhorias, mas ainda faltava a maior das honrarias, o título real. E a solução seria encontrar a fênix, ave miraculosa, e apresentá-la ao Santo Padre em Roma, que não poderia negar mais o seu pedido.

Não precisou sequer olhar para seu pupilo para saber que ele não tinha entendido.

- A fênix é raríssima, tendo sido avistada poucas vezes. Quando esta ave fantástica, de penas de ouro e cobre, olhos de rubi. sente a hora da morte chegar, constrói um ninho e se expõe ao sol. Em poucas horas, ela queima totalmente, não sobrando nada além de cinzas. E dessas cinzas, surge um único ovo, de onde sai outra de sua espécie. Ela é símbolo de Cristo, pois é o único animal capaz do milagre da ressurreição. E Cristo é o Rei dos reis, portanto ter uma pena dessa ave é levar consigo um estandarte do próprio filho de Deus. Assim, seu avô seria finalmente considerado digno da coroa real.

- E onde ela vive, mestre?

- Uma das páginas do livro continha as indicações para encontrar o pássaro. Nas terras distantes do Egito, perto do mítico reino do Preste João, há um jardim que guarda dois exemplares de tudo o que Deus já criou. Desde o simples rato até os mais exóticos animais das Índias. Dos tigres ferozes ao manso cordeiro. Pois lá também existiria a única fênix de todo o mundo.

- Mas lá não haveria dois exemplares de cada criação divina?

- Sim, meu jovem. Mas a fênix é especial, pois só pode haver uma. Seu avô estava decidido. Partiria em busca dessa ave, para finalmente poder ser chamado de rei. Há muito reivindicava tal direito, mas apesar de todas as suas terras, títulos e honrarias, seus pedidos foram negados pelo Papa e pelo Imperador, temerosos do seu poder. Com a mais rara das criaturas de Deus em mãos, não haveria como continuarem a negar o seu real valor. Nenhum de nós concordou com o plano. Era arriscado demais, homem algum havia ido ao Jardim das Delícias e retornado. O duque estava irredutível, não aceitou nosso conselho contrário, e tampouco outra companhia, além de um jovem escudeiro. Beijou a sua filha na testa, enxugando as lágrimas que corriam pelo rosto da princesa, e recomendou que seguisse o seu coração. Recomendou-nos cautela e disse que voltaria em breve, para retomar tudo o que lhe pertencia. Ao cair daquela noite, partiu.

Disfarçado como mercador, em poucos dias chegou ao porto de Marselha. Com o vento a seu favor, meu senhor e duque pouco demorou no mar Mediterrâneo. Apesar dos inúmeros perigos da viagem no mar infestado de piratas, nada aconteceu. Um bom sinal, sua viagem estava protegida pelos anjos. Então, ele desembarcou nas costas do misterioso Egito. As noites estreladas sobre o deserto o acolheram enquanto ele atravessava resoluto o imenso mar de areia. Segundo o livro que lera, o lugar maravilhoso habitado pela fênix era onde o grande rio, o Pai do Egito, surgia, nas proximidades do Éden. Semanas e mais semanas se passaram, enquanto seguiam incólumes por estranhas construções na areia, e por bandos de infiéis.

- Como eram essas construções?

- Existiam várias. Uma representava um animal maravilhoso, corpo de leão, asas de águia e rosto humano. Era uma esfinge, que guardava a passagem de um tesouro. Aquele que o quisesse, deveria responder certo a um enigma. Os séculos passaram-se e nenhum homem acertou, e o castigo era ser devorado pelo monstro. Pois bem, um jovem príncipe, muito sábio, dizem que um antepassado de senhor arquiduque, respondeu corretamente. No mesmo instante, a esfinge tornou-se pedra.

- Ainda existem esfinges guardando tesouros?

- Quem sabe, jovem amo? Não conheço as terras do outro lado do ‘Mare Nostrum’. O mais longe que fui na vida foi Londres...não passei da Ilha Bretã e dos portos franceses. Deixe-me continuar, lembrando que o que estou contando foi relatado a mim pelo jovem escudeiro que acompanhava o duque. Acabou a comida, e a água escasseava... mesmo os estranhos animais que os homens do deserto montam, chamados ‘camelos’, já estavam exaustos.

Há muito que as cidades e as estranhas construções ficaram para trás. Conforme iam seguindo o grande rio, o mundo ia se modificando. Mais plantas surgiam aqui e ali, o vento soprava mais fresco. E súbito encontraram, surgindo por trás de uma coluna de areia, um jardim maravilhoso. As árvores brilhavam ao sol com folhas verdes de esmeraldas e frutos vermelhos feitos de rubis. Havia duas de cada espécie de planta criada por Deus.

Debaixo das copas frondosas das árvores, mesas cobertas com os mais diversos tipos de iguarias exóticas e deliciosas pareciam aguardar o início de um grande banquete ou festival. Ricos adornos de pedras preciosas enfeitavam cada um dos serviços. As criaturas fantásticas das lendas serviam-se, entre sorrisos e cumprimentos.

- Quais?

- Fadas, gnomos , duendes... E muitas outras, que não conhecemos. Por entre as árvores, todos os tipos de animais podiam ser vistos. Sempre em dupla, não mais do que dois de cada espécie, indo daqueles que vemos em nossos pátios até aqueles cuja descrição conhecemos apenas por meio dos livros dos antigos sábios. Em uma clareira, dois unicórnios descansavam ao sol, enquanto um casal de seus parentes alados, da família do famoso Pegasus, alçava vôo. Um par de grifos alisava as penas das asas com os bicos aduncos. Nos caminhos que cortavam o lugar, serpentes com torsos humanos limpavam o chão cantando uma estranha melodia. Duas esfinges, animais maravilhosos, leões com faces humanas e asas de águia, foram em direção do meu senhor.

- Eram parentes da que fora transformada em pedra?

La Marche havia esquecido que havia descrito a construção egípcia.

- Bem lembrado, meu caro jovem. Não sei, mas é provável que sim, já que estes seres nunca foram comuns. A mais velha, de cabelos grisalhos e expressão absolutamente serena, se dirigiu ao duque.

“Quem é você e o que quer de nós? Porque invade o Portal da Criação?”

“Sou Carlos, duque de Borgonha, de Luxemburgo e do Brabante, conde de Flandres, senhor de muitas terras, descendente de reis e príncipes das mais nobres casas. Vim em busca da ave fênix, para poder me tornar rei!”

Quando o último eco da palavra rei sumiu no ar, uma sombra obscureceu o sol por alguns instantes, e na frente do meu senhor, surgiram as duas criaturas mais assustadoras que ele jamais vira. Também possuíam corpos como os do leão, mas seus rostos eram como o de demônios, com olhos rasgados, negros como a noite e bocarras com duas fileiras de dentes, afiados como lanças, rabos iguais aos do escorpião. Voavam graças a duas asas horrendas, como as de um morcego. Meu senhor lembrou-se das gravuras do livro, e concluiu que eram mantícoras, bestas das mais perigosas e das mais detestáveis que Deus colocou no mundo. Não deixaram que as esfinges respondessem.

“Pouco nos importa teu nome e tuas senhorias, humano. Somos todos aqui filhos diletos de Deus. Não como vocês, traidores! Repare que em nosso Jardim há um par de toda a criação, menos de vocês, filhos de Adão! Não são bem-vindos aqui!”

Arreganharam os dentes e avançaram em direção ao meu senhor, que não recuou um passo. Ficou olhando sereno enquanto aquelas horrendas criaturas de pesadelo aproximavam-se. Podia sentir o hálito quente e pestilento em sua face, e não retrocedeu. A mantícora que antes falara começou a rir. Parou de mover-se e encarou o duque.

“É corajoso para um humano, príncipe da Borgonha. Pode ir procurar a fênix. Porém, depois não reclame se conseguir.”

E assim aqueles dois seres de infâmia abriram caminho para meu senhor. Com a segurança daqueles que possuem a verdadeira nobreza, ele avançou. Nesse momento, separou-se do escudeiro, que iria assistir a grande aventura de seu amo ao longe. Pois Carlos respeitava seus servidores e não iria arriscá-lo. Daquele local em diante, sua trilha não poderia ser a de outro homem, mesmo um servo leal. O que contarei a seguir foi visto por esse jovem a grande distância, por meio de um espelho trazido por uma das mantícoras. A besta aconselhou-o a observar com atenção para que pudesse narrar tudo exatamente como havia ocorrido.

Depois de separar-se do escudeiro, um pequeno caminho abriu-se na frente do meu príncipe. Estreito e cercado, no seu início, por arbustos espinhosos que rasgaram a sua carne. No entanto, mesmo a dor aguda não o fez esmorecer. Ao contrário, fortaleceu seu espírito e ele prosseguiu. Sua roupa virou um farrapo indigno de cobrir tão majestoso homem. Quando pouco restava do pano que o vestia, a trilha alargou-se.

Essa senda larga atravessava um pântano no qual vapores pestilentos subiam do chão. Qualquer homem deixar-se-ia vencer pela náusea e ficaria prostrado no caminho. Mas meu senhor não se abateu. O pouco que sobrara de sua rica túnica de seda ele colocou sobre a boca e o nariz, impedindo que seu corpo fosse invadido pelos miasmas da podridão que o cercava. Porém, isso não evitou que insetos saíssem daquela lama pútrida e cobrissem o seu corpo, causando coceiras terríveis. Mesmo assim o duque continuava seu caminho.

Conforme andava, o pântano tornava-se menos inóspito, até que por fim todo o chão ficou novamente firme e seco. O duque Carlos, nu, o corpo rasgado em inúmeros pequenos cortes, estava defronte a uma imensa montanha. Sua pele latejava e ardia devido às mordidas de insetos. Os olhos ainda estavam enevoados dos vapores pantanosos. Com ar de desânimo, avaliou o seu próximo desafio. Era como se a imensa pedra gargalhasse de sua impotência e fragilidade. As laterais eram escarpadas, íngremes e não havia outro caminho. Ele pensava em voltar quando ouviu o grito de uma ave de rapina. Ergueu os olhos e seu coração encheu-se de alegria. O som rouco fora emitido pela mais mítica das aves, aquela que buscava: a fênix, que fazia seu ninho em uma reentrância na rocha, no ponto mais alto. Suas penas brilhavam ao sol, como o maior dos tesouros.

Não hesitou mais um instante sequer e colocou-se a caminho. Os muitos anos de guerra e de sofrimentos fortaleceram meu senhor, que começou a subir a montanha, vagarosamente. As pontas das pedras rasgavam sua pele, suas mãos sangravam em rios, porém isso não o deteve. Fixou seu olhar e seu pensamento no ninho. Neste momento, o duque provou que valia por mil reis. Jamais nenhum senhor havia tentado tal proeza, nem mesmo os mais lendários soberanos. A dor não existia para o príncipe da Borgonha. Somente sua vontade contava, e ela o levou ao seu destino.

Ao chegar ao topo, meu senhor sorriu para si mesmo. Finalmente. Depois de tantas guerras travadas, de tantas batalhas perdidas, seu sonho, que também fora o do seu pai, iria realizar-se. A ave apenas olhava, curiosa. Não se moveu, nem mesmo quando ele aproximou-se. Carlos pegou uma das penas, agradecendo ao majestoso ser, que reluzia com suas longas plumas douradas.

Ele preparava-se para descer, quando ouviu novamente o mesmo grito rouco. Lembre-se, jovem, que a fênix só faz o ninho quando está pronta para morrer e dar origem à outra. Carlos sentiu um calor crescente no instante em que a ave começou a consumir-se. Em suas mãos, a pena também estava em chamas. Tentou jogá-la longe, mas foi inútil. O vento fez com que o fogo se alastrasse por todo o cume, incendiando o ninho, a sua ocupante... e Carlos, duque da Borgonha.

Assim morreu meu jovem senhor, queimado com a fênix. Porém, esta ave é eterna, e ao ressurgir, trouxe consigo também o espírito de meu senhor, que não virou rei. Tornou-se imortal. Os nobres filósofos afirmam que os defeitos humanos são expurgados da alma pelo fogo. Consumido nas chamas da mais nobre das aves, qualquer mácula da carne foi limpa de meu amo. É este o peregrino de sangue nobre do qual descende, meu jovem amo. Ninguém em corte alguma, muito menos na corte de França, pode difamá-lo. Transcendeu a miséria da corrupção humana e agora vive em eterno deleite no Jardim das Delícias, junto com outras criaturas amadas por Deus. Mas peço que não conte isso a ninguém. Não queremos que o maldito rei da França vá tentar destruir tão belo jardim por inveja do duque.

Felipe sorriu para seu tutor, e fez a promessa, satisfeito. Agradeceu e saiu correndo, para retomar a atividade que interrompera. O velho Olivier de La Marche, descendente de um pequeno nobre, criado na casa mais poderosa da França e que a serviço de seus senhores, os duques da Borgonha, percorrera parte da Europa, sentiu lágrimas arderem em seus olhos. Onze longos anos haviam passado desde o cerco a Nancy e sua captura. Maria morrera poucos anos depois, deixando dois filhos ao cuidado de um marido semi-destruído por uma combinação de luto e vingança. Ao velho servidor, ele mesmo um viúvo, sobrara a educação de um jovem que jamais herdaria as terras borgonhesas.

Novamente La Marche percorreu com o olhar o recinto, que recendia a saber e a tempos melhores. Percebeu um volume aberto em cima da mesa do escriba. Era o final de um dos trechos de suas próprias Memórias, que estivera ditando. Ironia do Destino, ou aviso da Providência, era justamente a parte em que Carlos tinha seu corpo reconhecido de forma tão vil. O velho serviçal, homem de inúmeras batalhas, que debatera inúmeras vezes com inimigos ferrenhos de sua casa, com mãos trêmulas procurou a sua pena preferida, de um metal avermelhado que parecia faiscar com a luz das muitas velas acesas na biblioteca. Escreveu uma frase, logo abaixo da cena em que descrevia o corpo encontrado pelos franceses em Nancy e retirou-se da biblioteca enquanto a tinta ainda estava fresca no dito anexado ao seu trabalho.

“Assim reconheci naquele corpo o meu senhor Carlos, grande duque do Ocidente. Mas onde quer que esteja sua alma, que Deus seja piedoso.”





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1 comentários:

Esse conto é indecente de bom. Tenho dito. ò.ó

Tá, acabei de trocar meu conto preferido da Ana Cristina. :P

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