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quinta-feira, 20 de maio de 2010

Avaliações

Léo Borges


A mulher de casaco perto da janela dormiu com a boca aberta. Às vezes, seu tronco tomba pra cima da velha ao lado que, tremendo como se estivesse tomando um choque contínuo, tenta acender um cigarro. Acho que não existe nada mais feio que isso, incomodar quem está tentando fazer alguma coisa. Mas o pior é o casaco. Não por ser feio, mas por isso aqui estar uma sauna e ela estar vestida com ele. Se bem que ele também é feio (ou sou eu avaliando mal novamente).


Todos aqui, assim como eu, têm problemas. No meu caso são vários e acho que é por isso que minha memória me sabotou. Não me recordo qual profissional eu procurei. Pode parecer estranho, até mesmo triste (ou cômico, vai saber), mas não lembro se estou na sala de espera do meu advogado, do conselheiro matrimonial ou aguardando o psiquiatra.


O que sei é que estou esperando uma solução para algo que me aflige. E o esquecimento já não é algo que me perturba tanto, pois ele vem me dando tempo para que eu produza minhas versões, curta ou rechace aparências, avalie as circunstâncias e as fisionomias, enfim, pratique mentalmente meu preconceito. O objetivo principal de todos aqui, e isso parece lógico, é retirar os obstáculos que estão bloqueando suas felicidades, os entraves que azedam a vida, mas todos, em última análise, são também avaliadores enquanto esperam. É regra que não admite exceção, válida inclusive para a garota de vestido curto que está folheando uma daquelas revistas fúteis, admirando ou invejando atrizes televisivas. Com as coxas à mostra, ela saiu de casa (claro que com a anuência dos pais) para provocar. Como é deliciosa essa daí. Mas eu tenho de reprimir esse desejo, afinal é nova demais, talvez não mais que quinze anos. Coisa feia (o desejo, não ela).


E aquele gordo que não para de me olhar. Está com raiva de mim, achando que sou pedófilo. Ou não. Seu olhar é meigo, um olhar muito parecido com o meu para a menina, desejoso, julgador, cheio de luxúria. Abrindo meu coração eu digo que sinto raiva de gordos, pois quase todos são irônicos e se acham espertos, mas de homossexuais não, já que eles expõem suas carências com personalidade, sem pudores, sem ritos, até em salas claustrofóbicas como essa, e ninguém pode contrariar, nem mesmo através de um esgar que evidencie tímida desaprovação.


A velha, o isqueiro e o cigarro ainda se digladiam. A tremedeira (que pode ser de angústia, mas em hipótese nenhuma de frio) está claramente atrapalhando suas tentativas de saborear o tabaco. Uma pena, pois a fumaça e o fedor, calmamente espalhados pelo moribundo ventilador de teto, revigorariam estas pessoas desanimadas. Um ou outro, é certo, iria espernear, reclamar. A mulher de casaco acordaria sobressaltada (provavelmente tossindo), e eu veria, enfim, alguém mudar de comportamento, transgredir, argumentar, gritar, "Ei, aqui não é lugar de cigarro!", “Onde está o doutor que vai me atender?”, "Preciso saber se meu processo contra o banco já andou!", "Minha mulher me traiu pela quinta vez, já é o momento do divórcio?", "Aqueles bonecos de mármore ainda estão atacando os meus crocodilos!".


Por falar em gritar, chegou um esquálido sujeito de óculos amparado por um homem que solta uns gritos ocasionais. Eu não me arrisco a dizer qual dos dois indivíduos vai se consultar, porque ambos aparentam estar muito doentes. É... pensando bem, talvez eu esteja mesmo num consultório psiquiátrico, apesar de nunca ter visto tamanduás na minha cama e também de já ter visto muito corno gritar de raiva e ciúmes, além de, em algum momento da vida, ter ouvido os berros que um lesado qualquer deu quando se deparou com a imensa fraude que é este mundo.


O pequeno Cristo de metal, com sua coroa de espinhos, continua ali, crucificado e preso pelas costas a uma parede com negrumes de bolor, muito bem combinada com o semblante opaco dos que esperam. O que me incomoda é que ninguém ainda se impacientou com as discrepâncias desta sala mofada, com o calor absurdo ou a com absurda falta de explicações, com os cacoetes desesperados ou com os esperados desrespeitos, com as feiúras naturais ou com as complacências neuróticas. Nenhum dos presentes ainda questionou o tempo perdido porque ninguém, e essa é a dura verdade, sabe muito bem o que quer. Temem o que está por vir, o modo como virá e, principalmente, o que será feito para minimizar os estragos caso o que venha, venha de maneira hostil; o que se conhece é apenas a ânsia de que o Grande Salvador (que nesse caso não é o Pai do Cristo galvanizado) surja trazendo o conforto das respostas certas.


Meus olhos se mexem e meus pensamentos solidificam opiniões. Vim aqui para ser avaliado, não para avaliar. Vai ver esse é o meu grande defeito, o motivo pelo qual estou nesta sala: por julgar sem conhecimento, por avaliar sem critério ou por supor sem necessidade. Quero abandonar esse vício silencioso, que secretamente me corrói. Mas, para ser sincero, não sei se aqui existe alguém capaz de deixar de lado seus sofrimentos mudos (um paradoxo no caso do que grita) para encarar uma batalha contra seus próprios medos. Um bom começo nesse sentido se daria através de um bate-boca com a cúmplice por toda essa atmosfera envenenada: a secretária – a maldita intermediária entre o problema e a solução, entre o calvário e a alegria, entre o Grande Salvador e o inferiorizado. Ela deve saber bem de sua importância para os enfermos, os prejudicados, e talvez isso justifique sua posição no pedestal da indiferença.


Além de indiferente, ela é bastante vulgar, e também feia, mas se mantém séria (juro que não são avaliações, mas simples constatação). Não está nervosa com a aglomeração no recinto, com os seres que chegam e se escondem atrás de obsoletas revistas de fofoca, de celebridades, de moda outono-inverno. E elas, a feiúra e a vulgaridade (que ali interagem harmonicamente), me incomodam, mas não a calma e a indiferença (que também se confundem), porque é bom ver como as pessoas conseguem se ausentar do teatro em que estão, com que facilidade desprezam responsabilidades e protocolos. É gostoso cheirar essa omissão, toda fantasiada de seriedade, e medir até onde nossa alma pusilânime vai.


Com aquele uniforme decotado ela deve realmente estar pensando que é atraente, que pode se desculpar através de uma descompostura cheia de falsa beleza. Contudo, três segundos de observação bastam para ver que nela tudo é estranho e maléfico, tudo é rude e descolorido, e que ela traduz bem o que essa sala é. Mas sua voz, a doce voz das funcionárias dos Grandes Salvadores, esta, pelo menos, deve prestar.


– Senhora, por favor, não é permitido fumar aqui dentro.


Nem isso.

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3 comentários:

Léo, ler você é sempre um prazer (não é avaliação, apenas manifestação de prazer).rsrs. Por falar nisso, eu li uma crônica sua (O ANÔMALO) e a achei tão boa que a espalhei por todos os cantos onde alcanço e ainda gostaria de republicá-la no meu blog, se você não se incomodar. Claro que mantenho o crédito da autoria. Um abraço. Paz e bem.

Obrigado, Cacá! Muito me alegra ter um trabalho divulgado com esse entusiasmo. E desde já deixo a permissão para você publicar "O anômalo" em seu blog, salientando que é uma honra ver um "filho" crescer e ser publicado em ambientes literários de qualidade. Abraço.

Léo, estilo inconfundível de quem alcançou a tal maturidade literária.
Embora vc sempre tenha escrito com o prazer de quem realmente ama o que faz: contar uma boa história.
E isto é muito difícil, prender o leitor e manter o ritmo.
Parabéns pelos concursos, por todo caminho que vem trilhando e não pare de brindar seus leitores com suas criações.

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