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sexta-feira, 17 de julho de 2009

A Máscara da Morte Vermelha

Edgar Allan Poe
tradução: Henry Alfred Bugalho

A “Morte Vermelha” há muito devastara o país. Nenhuma pestilência jamais fora tão fatal, ou tão hedionda. Sangue era o seu avatar e seu selo — o rubor e o horror do sangue. Havia dores agudas e tontura súbita, e então sangramento profuso pelos poros, com decesso. As manchas escarlates sobre o corpo e especialmente sobre o rosto da vítima eram a execração da peste que lhe vetavam a ajuda e a simpatia de seus próximos. E toda a infecção, progresso e término da doença eram incidentes de meia hora.

Mas o Príncipe Prospero era alegre, destemido e sagaz. Quando seus domínios estavam despopulados pela metade, ele convocou à sua presença um milhar de amigos saudáveis e joviais dentre os cavaleiros e damas de sua corte, e com estes se recolheu à profunda reclusão de uma de suas abadias fortificadas. Ela era de uma extensa e magnífica estrutura, a criação do gosto excêntrico, porém augusto, do príncipe. Uma muralha forte e altiva a circundava. Esta muralha tinha portões de ferro. Após entrarem, os cortesãos trouxeram fornalhas e maciços martelos e soldaram as travas. Eles decidiram por não deixar nenhum meio de ingresso ou egresso pelos impulsos súbitos de desespero ou de frenesi daqueles desde o interior. A abadia estava vastamente abastecida. Com tais precauções, os cortesãos poderiam desafiar o contágio. O mundo exterior deveria tomar conta de si. No entremeio, era tolice se lamentar ou ponderar. O príncipe havia providenciado toda a sorte de prazeres. Havia bufões, havia improvisatori, havia bailarinas, havia músicos, havia o Belo, havia vinho. Lá dentro, havia tudo isto e segurança. Fora, havia a "Morte Vermelha".

Foi em torno do final do quinto ou sexto mês de reclusão que, enquanto a pestilência assolava enfurecidamente afora, o Príncipe Prospero entretinha seu milhar de amigos num baile de máscara da mais incomum magnificência.

Era uma cena voluptuosa aquela mascarada. Mas, primeiro, deixe-me falar das salas na qual ela ocorria. Eram sete — uma suíte imperial. Em muitos palácios, contudo, tais suítes compõem um panorama longo e retilíneo, quando as portas articuladas deslizam até as paredes em ambos os lados, de modo que a visão de toda sua extensão é escassamente impedida. Aqui o caso era muito diferente; como se poderia esperar do amor do duque pelo bizarro. Os apartamentos eram tão irregularmente dispostos que a visão embarcava nada mais do que um por vez. Havia uma aguda curva a cada vinte ou trinta jardas, e a cada curva um efeito diferente. À direita e à esquerda, no meio de cada corredor, uma alta e estreita janela gótica vislumbrava sobre um corredor cerrado que perseguia as angulosidades da suíte. Estas janelas eram vitrais cujas cores variavam de acordo com o matiz prevalecente da câmara para a qual se abria. A da extremidade oriental era, por exemplo, em azul — e de azul vívido eram suas janelas. A segunda câmara era púrpura em seus ornamentos e tapeçarias, e aqui as vidraças eram púrpuras. A terceira era totalmente verde, e assim eram seus caixilhos. A quarta era mobiliada e iluminada em laranja — a quinta em branco — a sexta em violeta. O sétimo apartamento estava intimamente revestido com tapeçarias de veludo negro que eram suspensas desde o teto, descendo pelas paredes e tombando em pesadas dobras sobre um tapete do mesmo material e matiz. Mas, nesta câmara apenas, a cor das janelas falhava em corresponder à sua decoração. As vidraças eram escarlates — uma profunda cor de sangue. Agora em nenhum dos sete apartamentos havia qualquer lâmpada ou candelabro, em meio à profusão de ornamentos dourados que jaziam dispersos para lá e para cá, ou dependurados no teto. Não havia luz alguma emanando de lâmpada ou vela desde o interior da suíte de câmaras. Mas, nos corredores que deixavam a suíte, ali havia, oposto a cada janela, um pesado tripé, sustentando um braseiro de fogo, que projetava seus raios através dos vitrais e assim cintilantemente iluminava a sala. E assim se produziam uma multidão de reluzentes e fantásticas aparições. Mas na sala ocidental, ou negra, o efeito da tocha que luzia sobre as janelas negras através dos vitrais cor de sangue era fantasmagórico ao extremo, e produzia uma visão tão selvagem sobre o temperamento daqueles que nela entravam, que eram poucos os da companhia corajosos o suficiente para porem o pé dentro do recinto.

Era neste apartamento que também havia, contra a parede ocidental, um gigantesco relógio de ébano. Seu pêndulo balançava de um lado a outro com um surdo, pesado, monótono retumbo; e quando o ponteiro dos minutos percorria o circuito, e estava para soar a hora, provinha dos pulmões acobreados do relógio um som que era nítido, sonoro, profundo e excessivamente musical, mas de uma nota e ênfase tão peculiares que, a cada lapso de hora, os músicos da orquestra eram constrangidos a pararem momentaneamente sua interpretação, para ouvirem o som; e assim os bailarinos obrigatoriamente cessavam suas evoluções; e havia um breve desconcerto coletivo na alegre companhia; e, enquanto os sinos do relógio ainda soavam, observava-se que os mais instáveis empalideciam, e os mais velhos e sedados passavam as mãos pelas sobrancelhas como se em confusa reverência ou meditação. Mas quando os ecos cessavam totalmente, uma risada leve de súbito traspassava a assembleia; os músicos olhavam uns para os outros e sorriam como se para seu próprio nervosismo e tolice, e faziam sussurrantes votos, cada um para o outro, que a próxima badalada do relógio não produziria neles semelhante emoção; e, então, após o lapso de sessenta minutos (que abarca três mil e seiscentos segundos do Tempo que voa), vinha ainda outra badalada do relógio, e então era o mesmo desconcerto, tremulação e meditação como antes.

Mas, a despeito de estas coisas, era uma festividade alegre e magnificente. Os gostos do duque eram peculiares. Ele tinha um olho apurado para cores e efeitos. Ele desprezava a decoração de mera moda. Seus planos eram ousados e fogosos, e suas concepções reluziam com lume bárbaro. Havia alguns que o tomariam por louco. Seus seguidores sentiam que ele não o era. Era necessário ouvir, ver e tocá-lo para se certificar de que ele não era.

Ele havia dirigido, em grande parte, os ornamentos móveis das sete câmaras para a ocasião desta grande festa; e foi seu próprio gosto indicador que havia dado personalidade aos mascarados. Tenha certeza de que elas eram grotescas. Havia muito resplendor, brilho, licenciosidade e fantasia — muito do costumaz desde em "Hernani". Havia figuras arabescas com membros e posições inapropriadas. Havia delirantes extravagâncias tais quais na moda de um louco. Havia muito do belo, muito de afronta, muito do bizarro, algo de terrível, e nem um pouco daquilo que poderia excitar repulsa. Para cá e para lá, nas sete câmaras, esgueiravam-se, na verdade, uma multidão de sonhos. E estes — os sonhos — se debatiam, assumindo os matizes das salas, e causando a selvagem música da orquestra se assemelhar ao eco de seus passos. E, subitamente, vêm badaladas no relógio de ébano que fica no salão de veludo. E, então, por um momento, tudo está em suspensão, e tudo está silêncio com exceção da voz do relógio. Os sonhos estão rigidamente congelados em seus lugares. Mas os ecos das badaladas se extinguem — eles haviam durado apenas um instante — e uma gargalhada leve, meio subjugada, flana atrás deles enquanto eles partem. E agora novamente a música se eleva, e os sonhos vivem, debatem-se de um lado para o outro ainda mais alegremente do que antes, assumindo os tons dos muitos vitrais através dos quais são refletidos os feixes dos tripés. Mas para a câmara que jaz mais para o ocidente das sete, agora não há nenhum dos mascarados que se aventure; pois a noite está acabando; e há fluxos de uma luz enrubescida através das janelas cor de sangue; e a negritude das tapeçarias escuras aterroriza; e para aquele cujo pé cai sobre o carpete negro, surge desde o próximo relógio de ébano um abafado tilintar mais solenemente enfático do que qualquer outro que alcança os ouvidos daqueles que se engajam em divertimentos mais remotos dos outros apartamentos.

Mas estes outros apartamentos estavam densamente populados, e neles batia fervorosamente o coração da vida. E a festividade prosseguiu freneticamente, até que, em certo momento, começou a soar meia-noite no relógio. E então a música cessou, como eu havia dito; e as evoluções dos dançarinos se silenciaram; e havia uma desconfortável interrupção em todas as coisas como antes. Mas agora doze badaladas soavam no sino do relógio; e assim isto ocorreu, talvez mais pensamentos se embrenharam, com o passar do tempo, nas meditações dos pensativos dentre aqueles que festejavam. E assim também ocorreu, talvez, que antes de o último eco da última badalada ter imergido completamente no silêncio, havia muitos indivíduos na multidão que encontraram prazer em se tornar ciente da presença de uma figura mascarada que não havia capturado a atenção de ninguém anteriormente. E o rumor desta nova presença havia se espalhado, aos sussurros, ao redor, a certa altura, ergueu-se de toda a companhia um buchicho, ou murmúrio, expressão de desaprovação e surpresa — então, finalmente, de terror, horror e repulsa.

Numa assembleia de fantasias tais quais retratei, poderia bem se supor que nenhuma aparência ordinária teria excitado tal sensação. Na verdade, a licença da mascarada da noite era quase ilimitada; mas a figura em questão extrapolava todos os limites, e havia ultrapassado as fronteiras até mesmo do indefinito decoro do príncide. Há acordes nos corações dos mais descuidados que não podem ser tocados sem emoção. Mesmo com aquele completamente perdido, para quem vida e morte são igualmente zombarias, há assuntos sobre as quais nenhuma zombaria pode ser feita. Na verdade, toda a companhia parecia agora sentir profundamente que na fantasia e no comportamento do estranho não existia sabedoria nem propriedade. A figura era alta e esquelética, e encoberta da cabeça aos pés com as vestes da cova. A máscara que escondia as feições era feita de modo a se assemelhar à aparência de um cadáver enrijecido, que mesmo o escrutínio mais detalhado teria dificuldade em detectar a farsa. E tudo isto ainda poderia ter sido suportado, até aprovado, pelos insanos festeiros. Mas o mímico havia ido longe demais ao assumir o tipo da Morte Vermelha. Suas vestes manchadas de sangue — e sua ampla fronte, com todas as feições do rosto, estava espargida com o horror escarlate.

Quando os olhos do Príncipe Prospero pousaram sobre esta imagem espectral (que com um movimento lento e solene, como se para mais completamente manter seu papel, vagava de um lado a outro entre os dançarinos), ele pareceu ter convulsões, num primeiro momento com um forte tremor tanto de terror quanto de repulsa; mas, em seguida, sua testa enrubesceu de raiva.

— Quem ousa? — ele roucamente indagou os cortesão que estavam próximos dele — quem ousa nos insultar com esta pilhéria blasfematória? Agarrem-no e o desmascarem — para que saibamos a quem devemos enforcar ao nascer do sol, desde os parapeitos!

Era na câmara oriental, ou a azul, na qual estava o Príncipe Prospero quando ele pronunciou estas palavras. Elas retumbaram alto e claramente através das sete salas —pois o príncipe era um homem destemido e robusto, e a música havia sido suspensa com um movimento de sua mão.

Era na sala azul que estava o príncipe, com um grupo de pálidos cortesão a seu lado. A princípio, enquanto ele falava, houve um ligeiro movimento apressado deste grupo em direção ao intruso, que, naquele momento também estava ao alcance, e agora, com passo deliberado e imponente, se aproximou ainda mais do falante. A despeito de certo fascínio inominável com que as aparências insanas do mímico haviam inspirado todo o grupo, não havia ninguém que estendesse a mão para agarrá-lo; então assim, desimpedido, ele ficou a uma jarda da pessoa do príncipe; e enquanto a vasta assembleia, como se num único impulso, encolheu desde os centros das salas para as paredes, ele percorreu seu caminho ininterruptamente, mas com o mesmo passo solene e calculado que o havia distinguido desde o começo, através da câmara azul para a púrpura — através da púrpura para a verde — através da verde para a laranja — através desta também para a branca — e até desta para a violeta, antes que um movimento decidido houvesse sido feito para capturá-lo. Foi então, contudo, que o Príncipe Prospero, enlouquecido com fúria e vergonha por sua própria covardice momentânea, correu apressadamente através das seis câmaras, enquanto ninguém o seguiu por causa do terror mortal que os havia tomado a todos. Ele ergueu alto uma adaga desembainhada e havia se aproximado, com rápida impetuosidade, para três ou quatro pés da figura que recuava, quando o último, tendo atingido a extremidade do apartamento de veludo, virou-se subitamente e confrontou seu perseguidor. Ouviu-se um grito agudo — e a adaga caiu resplandecente sobre o carpete negro, sobre o qual, instantaneamente em seguida, caiu prostrado morto o Príncipe Prospero. Então, convocando a coragem selvagem do desespero, uma horda dos festejadores, de uma vez só, precipitou-se para dentro do apartamento negro e, agarrando o mímico, cuja alta figura permaneceu ereta e imóvel sob a sombra do relógio de ébano, engasgou-se em horror inefável ao descobrir as mortalhas fúnebres e a máscara cadavérica, que eles sustinham com tão violenta rudeza, desabitadas por qualquer forma tangível.

E agora foi constatada a presença da Morte Vermelha. Ela havia vindo como um ladrão na noite. E, um por um caíram, os festejadores nas paredes cor de sangue dos saguões de sua festividade, e morreu cada qual na desesperadora posição de sua queda. E a vida do relógio de ébano se foi com aquela do último dos joviais. E as chamas dos tripés se extinguiram. E as Trevas, Decadência e a Morte Vermelha mantiveram ilimitado domínio sobre tudo.


Fonte: http://poestories.com/stories.php

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