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quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Vadia Liberdade

 


Ostentava Virgínia um olhar de abismal e cósmica depravação, efeito de sobrancelhas tão assombrosas em seus contornos quanto as sinuosidades das galáxias; e de olhos arregalados como astros cuja iluminação, ao invés de eclipsar os corpos celestes, evidenciava a graça de suas formas e traços; e, também e por último, de lábios delineados por vermelhos como a cauda dos cometas.

Enfim, ostentava um rosto de pervertida.

Tal caráter ninguém acusava, nem os amigos, com receio de ofenderem-na, nem os inimigos, com receio de, mediante a verdade, despertarem-na para transformações benéficas a ela e inconvenientes a eles. Pois malgrado a máscara do vício não representasse um erro si, tampouco a obscenidade, aliados e adversários reconheciam em sua face o pecado original, nossa sina de uso e abuso, estigma discernido em percepções efêmeras e meditações sigilosas, temorosos eles de manifestar as íntimas ponderações e apreciações de valor e, pela via e vida das palavras, identificar princípios não agradáveis e alusivos à si.

Alheia à expressão era a própria Virgínia, e em sua narrativa interior ela descrevia-se como casta e correta, adepta do ascetismo, modelo nem tanto de moralidade como de insanidade, afinal desconsiderava os seus melhores instintos ao almejar uma existência de abnegações e renúncias, de fastidiosos meios-termos. E era alheia a despeito do habitual contemplar-se no reflexo de espelhos ou no confinamento das fotografias, do assistir-se nas filmagens de um casamento em que valsava com os primos, na pista e no semblante a desfilar com os lábios entreabertos e vermelhos, olhos ornados por rímel, o quadril além das curvas. Não aferira sua condição de pervertida nem ao analisar os numerosos e impudicos sonhos e o permanente fantasiar, reputando-os como resultado das mais saudáveis, e superiores, psicologias. 

Mas o recorrente existir acua-nos frente à verdade, e apesar de Virgínia, no passado, furtar-se às evidências e depreciar as graças do acaso, logrou a sorte última de convergirem as circunstâncias para o reconhecimento precoce de sua devassidão. E assim descobriu-se impressa na fotografia de um jornal: a imagem apresentava um casal de idosos e, em segundo plano, imprecisa em curvas, Virgínia. Ou melhor, na cena percebia-se somente Virgínia a despeito do enfoque nos vetustos bailarinos, como se numa concordância de equívocos competisse à silhueta revelar seu caráter de libertina.

A visão da imagem e a epifania resultante ocorreram no café da manhã seguinte. Lambia a manteiga do dedo quando abriu o periódico e reconheceu-se na fotografia. Virgínia ingeriu a revelação, lançou as folhas no mero ar. Deus dos céus, alarmou-se ela. Não sou assim, não fui assim; mas sou. Como, indagou ela, como jamais vira-se em sua verdadeira face, e à mente assomou-lhe a recordação das ilusões de óticas que, se desmistificadas, jamais retornavam à condição de enigma.

Ergueu-se.

Antes graciosa qual os felinos de seus sonhos, então movimentou-se com outra sensualidade, consciente de suas muitas curvas e graças e do libidinoso potencial da carne. Nos aposentos da casa não se ouvia vivalma, e na rua o silêncio sobrepunha-se ao cotidiano. Frente ao espelho do quarto, olhou-se, e ao olhar-se mal se percebeu, como se houvesse nela o de sempre, o mesmíssimo, e agora evidente, sempre. Virgínia encarou-se, confidenciou ao reflexo.

Vadia, eu sou uma vadia.

Sentia-se plena.


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Erik K. Weber
Gaúcho.






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